domingo, 24 de março de 2013

SOCIEDADE E CULTURA NA PRÁTICA PROFISSIONAL EM SAÚDE

CHINATOWN EM NITERÓI  


Esta semana conheci Isabela, uma jovem imigrante chinesa que procurou o serviço de saúde por motivo  de gravidez, aproximadamente com 10 semanas de gestação. Recém-chegada da China, Isabela trabalha em uma pastelaria no Centro de Niterói, como outros chineses em  situação análoga, a jovem não tem moradia, vive no estabelecimento que trabalha em condição precária, sua escolaridade é deficitária  e não fala português.  Recebeu o codinome 'Isabela' dos colegas da pastelaria logo assim que chegou ao Brasil. Para a consulta trouxe o passaporte e uma colega de trabalho que não falava mandarim. 


 O episódio foi hilário. A inexistência de comunicação era entremeada pelo aumento da voz da “intérprete”, por gestos exagerados, mímicas e desenhos sem êxito.  Enquanto isso, a jovem ria sem entender a complexidade da situação que nos encontrávamos. Diante disso, todo o histórico de Isabela resumiu-se a lacunas, na coleta de dados, na anamnese, nas queixas e também nas orientações que ela esperava receber. Embora o episódio tenha ocorrido num centro urbano, a barreira linguística impediu a comunicação, e conseqüentemente, todo o processo assistencial e educativo foi prejudicado. Apesar da jovem chinesa não estar em situação de enfermidade, a barreira cultural tornou o atendimento precário e vulnerável a uma situação de risco posterior. Uma derrota para a educação em saúde.

A partir deste relato de experiência faço as seguintes considerações: 
A práxis em saúde permite olhares, percepções e impressões sobre o cotidiano. O dia-a-dia laboral, longe de ser estático e constante é rico, dinâmico e cheio de subjetividades, sua análise exige uma concepção de saúde mais ampla e inclusiva, valorizando o pertencimento e a bagagem cognitiva, psicológica, social e cultural de cada usuário e do coletivo.

Morin (2011) afirma que o que há de mais biológico no ser humano é também o que há de mais impregnado de cultura, logo uma assistência em saúde que priorize a humanização e o acolhimento deve respeitar esta dimensão cultural que atravessa o biológico. O exemplo de Isabela revela a necessidade da comunicação em saúde como a primeira estratégia de ação, não só em áreas demarcadas pela presença de culturas indígenas como nos grandes centros urbanos onde há população imigrante; 

O SUS como um campo de disputa de poder, perpetua os pressupostos  cartesianos que legitimam como profissionais de saúde aqueles com formação na área biomédica. Esta tem sido uma visão institucional pobre e tímida que esvazia a assistência da dimensão cultural e social. O encontro com a futura mãe de um cidadão brasileiro seria muito mais proveitoso se houvesse a participação de outros profissionais como educadores, tradutores, sociólogos, antropólogos, assistentes sociais etc. 

A construção de novos valores e hábitos não ocorre de imediato; é processual. A educação em saúde, nestas condições, requer compreensão do sentido e pertencimento social, susceptível de segregação, isolamento, resistências e negações entre os sujeitos envolvidos. É importante considerar a questão cultural e social como fatores determinantes de saúde; a jovem, por exemplo, apresentava baixo peso por conta da dificuldade de adaptação aos hábitos alimentares do Brasil;

O encontro entre o “eu” e o “outro” deve ser esvaziado de pressupostos unilaterais. No caso da jovem gestante, o fato dela ter somente dezoito anos me fez “supor” que a situação vacinal estava regular; mas esta situação pertence à visão ocidental de saúde, pautada na  prevenção com imunobiológicos. Mas, na China é assim? Diante da dimensão do país, a região onde ela morava tinha acesso à unidade de saúde pública? O calendário vacinal é similar ao nosso? O desconhecimento sobre a cultura sanitária chinesa me conduziu a pressupostos equivocados.

Esta experiência me fez concordar com Dejours, pensar em saúde é sempre mais difícil do que pensar em doença.  Na situação de doença há ações imediatas e prioritárias, no entanto, a atenção ao sujeito saudável requer atitudes e estratégias de promoção à saúde como: considerar em cada usuário a diversidade, singularidade e a subjetividade, o habittus segundo Bourdieu; investir em educação não só para a saúde, mas para a vida no sentido de estimular a construção da cidadania e da ética na sociedade; priorizar a autonomia e emancipação do usuário; respeitar a vontade, verdades e limites do “outro” e não infringi-lo com o meu “eu”, vontades e verdades. 

Podemos concluir que a construção de um novo paradigma de saúde realmente eficiente e humanitário  depende de desconstrução e reconstrução de concepções sobre sujeitos, serviços e saúde.  Entender que o SUS é universal e tem por princípio filosófico a equidade e isto significa iguais condições de acesso e qualidade na assistência para os nacionais e estrangeiros dentro deste imenso território. Desta forma, podemos afirmar que por deficiência do sistema Isabela, uma “brachinesa”, não recebeu o atendimento pré-natal que merecia.   


Referências:

ARAÚJO Inesita Soares de e Janine Miranda Cardoso. Comunicação e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.
BRASIL. Lei Nº 8080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. In: Conselho Regional de Serviço Social – CRESS 11ª Região. Coletânea de Legislações: direitos de cidadania. Curitiba, nov. 2003.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma reformar o pensamento. 19ª edição – Rio de |janeiro: Bertrand Brasil, 2011
PAIM, Jairnilson Silva. O que é SUS? Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009

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