Esta semana conheci Isabela, uma jovem imigrante chinesa que procurou o serviço de saúde por motivo de gravidez, aproximadamente com 10 semanas de gestação. Recém-chegada da China, Isabela trabalha em uma pastelaria no Centro de Niterói, como outros chineses em situação análoga, a jovem não tem moradia, vive no estabelecimento que trabalha em condição precária, sua escolaridade é deficitária e não fala português. Recebeu o codinome 'Isabela' dos colegas da pastelaria logo assim que chegou ao Brasil. Para a consulta trouxe o passaporte e uma colega de trabalho que não falava mandarim.
O episódio foi hilário. A inexistência
de comunicação era entremeada pelo aumento da voz da “intérprete”, por gestos
exagerados, mímicas e desenhos sem êxito. Enquanto isso, a jovem ria sem entender a complexidade
da situação que nos encontrávamos. Diante disso, todo o
histórico de Isabela resumiu-se a lacunas, na coleta de dados, na anamnese, nas
queixas e também nas orientações que ela esperava receber. Embora o episódio tenha ocorrido num centro urbano, a barreira
linguística impediu a comunicação, e conseqüentemente, todo o processo
assistencial e educativo foi prejudicado. Apesar da jovem chinesa não estar em
situação de enfermidade, a barreira cultural tornou o atendimento precário e
vulnerável a uma situação de risco posterior. Uma derrota para a educação em saúde.
A
partir deste relato de experiência faço as seguintes considerações:
A práxis em saúde permite olhares, percepções
e impressões sobre o cotidiano. O dia-a-dia laboral, longe de ser estático e
constante é rico, dinâmico e cheio de subjetividades, sua análise exige uma
concepção de saúde mais ampla e inclusiva, valorizando o pertencimento e a
bagagem cognitiva, psicológica, social e cultural de cada usuário e do
coletivo.
Morin (2011) afirma
que o que há de mais biológico no ser humano é também o que há de mais impregnado
de cultura, logo uma assistência em saúde que priorize a humanização e o acolhimento
deve respeitar esta dimensão cultural que atravessa o biológico. O exemplo de Isabela
revela a necessidade da comunicação em saúde como a primeira estratégia de
ação, não só em áreas demarcadas pela presença de culturas indígenas como nos
grandes centros urbanos onde há população imigrante;
O SUS como um campo
de disputa de poder, perpetua os pressupostos cartesianos que legitimam como profissionais
de saúde aqueles com formação na área biomédica. Esta tem sido uma visão institucional
pobre e tímida que esvazia a assistência da dimensão cultural e social. O
encontro com a futura mãe de um cidadão brasileiro seria muito mais proveitoso
se houvesse a participação de outros profissionais como educadores, tradutores,
sociólogos, antropólogos, assistentes sociais etc.
A construção de novos
valores e hábitos não ocorre de imediato; é processual. A educação em saúde,
nestas condições, requer compreensão do sentido e pertencimento social, susceptível
de segregação, isolamento, resistências e negações entre os sujeitos
envolvidos. É importante considerar a questão cultural e social como fatores
determinantes de saúde; a jovem, por exemplo, apresentava baixo peso por conta
da dificuldade de adaptação aos hábitos alimentares do Brasil;
O encontro entre o
“eu” e o “outro” deve ser esvaziado de pressupostos unilaterais. No caso da
jovem gestante, o fato dela ter somente dezoito anos me fez “supor” que a
situação vacinal estava regular; mas esta situação pertence à visão ocidental
de saúde, pautada na prevenção com imunobiológicos. Mas, na China é
assim? Diante da dimensão do país, a região onde ela morava tinha acesso à
unidade de saúde pública? O calendário vacinal é similar ao nosso? O
desconhecimento sobre a cultura sanitária chinesa me conduziu a pressupostos
equivocados.
Esta experiência me fez concordar com
Dejours, pensar em saúde é sempre mais difícil do que pensar em doença. Na situação de doença há ações imediatas e
prioritárias, no entanto, a atenção ao sujeito saudável requer atitudes e estratégias
de promoção à saúde como: considerar em cada usuário a diversidade, singularidade
e a subjetividade, o habittus segundo
Bourdieu; investir em educação não só para a saúde, mas para a vida no sentido
de estimular a construção da cidadania e da ética na sociedade; priorizar a
autonomia e emancipação do usuário; respeitar a vontade, verdades e limites do
“outro” e não infringi-lo com o meu “eu”, vontades e verdades.
Podemos
concluir que a construção de um novo paradigma de saúde realmente eficiente e
humanitário depende de desconstrução e
reconstrução de concepções sobre sujeitos, serviços e saúde. Entender que o SUS é universal e tem por
princípio filosófico a equidade e isto significa iguais condições de acesso e
qualidade na assistência para os nacionais e estrangeiros dentro deste imenso
território. Desta forma, podemos afirmar que por deficiência do sistema Isabela,
uma “brachinesa”, não recebeu o atendimento pré-natal que merecia.
Referências:
ARAÚJO Inesita Soares de e Janine Miranda Cardoso. Comunicação e Saúde. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 2007.
BRASIL. Lei Nº 8080 de 19 de setembro de 1990.
Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a
organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras
providências. In: Conselho Regional de Serviço Social – CRESS 11ª Região.
Coletânea de Legislações: direitos de cidadania. Curitiba, nov. 2003.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma
reformar o pensamento. 19ª edição – Rio de |janeiro: Bertrand Brasil, 2011
PAIM, Jairnilson Silva. O que é SUS? Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 2009
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