quarta-feira, 3 de abril de 2013

EXISTE VIDA INTELIGENTE POR TRÁS DOS MUROS?




Você se lembra dos Jetsons? Era um desenho animado da década de 80 produzido pela Hanna-Barbera Productions. A história tinha por protagonistas os  membros de uma família classe média do futuro – os Jetsons.  A idéia era apresentar de forma lúdica e satirizada previsões sobre o futuro da humanidade, carros voadores, cidades suspensas, trabalho automatizado, brinquedos de comando, os mais variados eletrodomésticos, alimentos instantâneos e robôs muitos robôs.

De fato, o século XXI confirma a previsão dos Jetsons. Constelação de satélites, estações espaciais, telefonia celular, alta tecnologia digital, nanotecnologia, internet, a despeito da revolução tecnológica este século rompe com as barreiras do tempo e do espaço. A informação, as relações diplomáticas e profissionais, o mercado, os relacionamentos, as manifestações culturais, o turismo e demais práticas sociais submetem-se hoje a uma nova lógica virtual e globalizada. 

A grande caixa de pandora que os Jetsons não previram está no fato que dentro desta aldeia global tecnológica e sem fronteiras existe um mundo cercado por muros. Na concepção de Milton Santos as relações de poder do colonialismo e do imperialismo desterritorializaram os espaços, mas não pagaram suas contas. Os muros foram fisicamente instalados, definindo quem fica dentro e quem permanece fora, permeiam as fronteiras nacionais, as prisões, os estádios, os condomínios, etc. Além deles há também os muros invisíveis, cujos alicerces, fundados em ideologias e interesses hegemônicos, são mais resistentes aos abalos sísmicos do que aqueles de alvenaria.  São os muros sociais, educacionais, étnicos, religiosos, culturais...  Muros que produzem dor, miséria, flagelos, massacres, exclusão, desemprego, invisibilidade, criminalidade, vícios e mais muros.

Interessante como os muros atravessam a história ocupando um espaço privilegiado na estrutura espacial e mental da humanidade. A antiguidade inaugura a muralha da China, a Bíblia descreve no livro de Neemias a reconstrução dos muros de Jerusalém, as maiores religiões monoteístas disputam o muro das Lamentações, a Guerra Fria ergue os muros de Berlim, O imperialismo norte-americano  mantém o muro do Império,  o etnocentrismo alimenta a cerca da separação entre Palestina e Israel e assim por diante.

Para além da finalidade de separar, proteger, excluir, dividir o muro provoca uma curiosidade acerca do outro mundo e o que há nele. Desperta um estranhamento, por isso assistimos aos filmes e documentários sobre as minorias étnicas, os confinamentos do sistema prisional, os guetos sejam eles de Varsóvia ou do crack; até os confinamentos cenográficos alcançam altos índices na preferência popular.  Junto ao estranhamento há a vontade de transgredir, de romper o muro. Durante os trinta anos do Muro de Berlim cerca de mil pessoas morreram tentando atravessá-lo, enquanto na fronteira dos EUA e México até hoje já são mais de dois mil mortos. A fronteira sempre exerce o fetiche do “gramado mais verde”.  Teríamos nós fascinação por muros? Ou eles são tão freqüentes que já fazem parte da nossa existência?

Embora os Jetsons anunciassem cidades suspensas com calçadas rolantes sem muros, o menino Lucas avisava que os muros estavam ali bem presentes.  Lucas era um personagem do livro “Sombras de reis barbudos” de José J. Veiga, que li na adolescência como atividade extraclasse. Trata-se de uma narrativa contada em primeira pessoa pelo menino do interior que conta a transformação de sua vida e da pequena cidade em que morava após a chegada da grande companhia. Um empreendimento, em analogia à ditadura militar, envolvendo homens de negócios, militares,  fiscais e vigias. Com o objetivo de cercear direitos, liberdades e exercer domínio sobre a população,  a  primeira ação da Cia na pequena cidade é levantar muros.

 De repente os muros, esses muros. Da noite para o dia eles brotaram assim retos, curvos, quebrados, descendo, subindo, dividindo as ruas ao meio conforme o traçado, separando amigos, tapando vistas, escurecendo, abafando. Até hoje não sabemos se eles foram construídos aí mesmo nos lugares ou trazidos já prontos e fincados aí. (...) pensávamos que não íamos nos acostumar; hoje podemos transitar por toda parte até de olhos fechados, como se os muros não existissem. (pág. 27)

Esse livro marcou minha adolescência, li várias vezes, me trazia um misto de condescendência com o pequeno Lucas e um pavor dos muros e da “Companhia”, sem ter na época a mínima noção do que se tratava. Hoje quando releio este trecho aumenta o meu pavor ao constatar que os Jetsons blefaram e que nos acostumamos com os muros. Transitamos neles falando nos celulares, com GPS, tablets conectados nas redes sociais, curtindo, compartilhando e comendo fast foods. Transitamos até de olhos fechados como se os muros não existissem...