Você
se lembra dos Jetsons? Era um desenho
animado da década de 80 produzido pela Hanna-Barbera
Productions. A história tinha por protagonistas os membros de uma
família classe média do futuro – os Jetsons. A idéia era apresentar de forma lúdica e
satirizada previsões sobre o futuro da humanidade, carros voadores, cidades
suspensas, trabalho automatizado, brinquedos de comando, os mais variados
eletrodomésticos, alimentos instantâneos e robôs muitos robôs.
De
fato, o século
XXI confirma a previsão dos Jetsons. Constelação de satélites, estações
espaciais, telefonia celular, alta tecnologia digital, nanotecnologia, internet,
a despeito da revolução tecnológica este século rompe com as barreiras do tempo
e do espaço. A informação, as relações diplomáticas e profissionais, o mercado,
os relacionamentos, as manifestações culturais, o turismo e demais práticas
sociais submetem-se hoje a uma nova lógica virtual e globalizada.
A grande caixa de
pandora que os Jetsons não previram está no fato que dentro desta aldeia global
tecnológica e sem fronteiras existe um mundo cercado por muros. Na concepção de
Milton Santos as relações de poder do colonialismo e do imperialismo desterritorializaram
os espaços, mas não pagaram suas contas. Os muros foram fisicamente instalados,
definindo quem fica dentro e quem permanece fora, permeiam as fronteiras
nacionais, as prisões, os estádios, os condomínios, etc. Além deles há também os
muros invisíveis, cujos alicerces, fundados em ideologias e interesses
hegemônicos, são mais resistentes aos abalos sísmicos do que aqueles de alvenaria.
São os muros sociais, educacionais, étnicos,
religiosos, culturais... Muros que produzem
dor, miséria, flagelos, massacres, exclusão, desemprego, invisibilidade,
criminalidade, vícios e mais muros.
Interessante como os muros atravessam
a história ocupando um espaço privilegiado na estrutura espacial e mental da humanidade.
A antiguidade inaugura a muralha da China, a Bíblia descreve no livro de Neemias
a reconstrução dos muros de Jerusalém, as maiores religiões monoteístas
disputam o muro das Lamentações, a Guerra Fria ergue os muros de Berlim, O
imperialismo norte-americano mantém o muro
do Império, o etnocentrismo alimenta a cerca
da separação entre Palestina e Israel e assim por diante.
Embora os Jetsons anunciassem
cidades suspensas com calçadas rolantes sem muros, o menino Lucas avisava que
os muros estavam ali bem presentes. Lucas era um personagem do livro “Sombras de
reis barbudos” de José J. Veiga, que li na adolescência como atividade extraclasse.
Trata-se de uma narrativa contada em primeira pessoa pelo menino do interior
que conta a transformação de sua vida e da pequena cidade em que morava após a
chegada da grande companhia. Um empreendimento, em analogia à ditadura militar,
envolvendo homens de negócios, militares, fiscais e vigias. Com o objetivo de cercear
direitos, liberdades e exercer domínio sobre a população, a primeira ação da Cia na pequena cidade é
levantar muros.
De repente os muros, esses muros. Da
noite para o dia eles brotaram assim retos, curvos, quebrados, descendo,
subindo, dividindo as ruas ao meio conforme o traçado, separando amigos,
tapando vistas, escurecendo, abafando. Até hoje não sabemos se eles foram
construídos aí mesmo nos lugares ou trazidos já prontos e fincados aí. (...) pensávamos
que não íamos nos acostumar; hoje podemos transitar por toda parte até de olhos
fechados, como se os muros não existissem. (pág. 27)
Esse livro marcou minha
adolescência, li várias vezes, me trazia um misto de condescendência com o
pequeno Lucas e um pavor dos muros e da “Companhia”, sem ter na época a mínima
noção do que se tratava. Hoje quando releio este trecho aumenta o meu pavor ao
constatar que os Jetsons blefaram e que nos acostumamos com os muros. Transitamos
neles falando nos celulares, com GPS, tablets conectados nas redes sociais, curtindo,
compartilhando e comendo fast foods. Transitamos até de olhos fechados como se
os muros não existissem...