quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O QUE ESTÁ ACONTECENDO? O SUS ESTÁ AO CONTRÁRIO E NINGUÉM REPAROU... 


 O governo do PT, depois de dez longos e adormecidos invernos, despertou para a seguinte realidade: faltam médicos no SUS??? 
No SUS faltam médicos!!! Digo mais... faltam dentistas, psicólogos, nutricionistas, enfermeiros, técnicos, agentes comunitários, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, farmacêuticos, administrativos, inclusive médicos.

Lamentavelmente o ideário democrático iniciado na década de 80, com o movimento em defesa da reforma sanitária, hoje esmorece diante das imposições neoliberais. A passos largos o Sistema Único de Saúde vem se rendendo às medidas provisórias, portarias, determinações, editais. Um encaminhamento no mínimo autoritário que sobrepõe todo o debate e luta de democratização da saúde e a imperiosa relevância da participação popular neste processo.

 Em documento intitulado “Vinte anos de SUS: celebrar o conquistado, repudiar o inaceitável”, o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) elaborou em 2008, marco dos vinte anos da criação do SUS, um manifesto contendo um rol de situações consideradas inaceitáveis na trajetória do SUS.  Dentre elas a desvalorização do profissional de saúde recebeu significativo destaque, “É inaceitável que os profissionais de saúde sejam desvalorizados e tenham suas condições de trabalho aviltadas”.

Hoje, cinco anos após este manifesto assistimos à chamada de médicos estrangeiros para os confins da terra brasilis sobre a denominação "Programa Mais Médicos para o SUS".  A proposta se justifica em um discurso tacanho de convocação de médicos estrangeiros , como se fosse uma força tarefa, para socorrer áreas de maior vulnerabilidade social do país.  Falamos de quem? Burkina Faso? Haiti? Burundi? Níger? Não!!!! Falamos do Brasil, uma das economias mais promissoras do mundo, com altas concentrações renda per capita, com riquezas naturais, autossustentável em energia fóssil, sede da Copa do Mundo e das Olimpíadas, um dos principais países no mercado BRIC’s.
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No Portal do Ministério da Saúde a justificativa para a Medida provisória deriva de duas situações, primeira,  a desproporção entre o número de médicos no país e a ampliação dos postos de trabalho no SUS. Este fato pode ser compreendido como fruto do descaso histórico com a saúde pública no Brasil. As políticas depreciativas, o financiamento deficitário, a desvalorização dos servidores, os baixos salários e péssimas condições de trabalho, foram semeando o desinteresse dos jovens pela área de saúde e, consequentemente, refletiram na evasão de talentos para outras áreas do conhecimento privilegiadas pelo mercado de trabalho (Tecnologias de Informação e Comunicação, Direito, Publicidade, Engenharia de Petróleo, Ambiental, de Produção etc.) A outra situação refere-se à má distribuição de médicos no território nacional. A concentração de médicos e demais profissionais nos grandes centros urbanos não deveria causar estranhamento para a alta administração do governo, uma vez que toda a infraestrutura educacional e sanitária (universidades, estágios, residência, especializações, rede hospitalar, atendimento por especialidades, reabilitação, exames de alta complexidade) também são essencialmente metropolicêntricas. A origem do deslocamento decorre da exclusão educacional das áreas periféricas do país, na fase de formação e profissionalização do estudante.   Dados do IBGE (2010) confirmam que 29,2% dos universitários brasileiros moram em uma cidade e estudam em outra e o índice chega a 32,6% em relação aos cursos de especialização, mestrado ou doutorado. O alto fluxo de profissionais nos grandes centros hegemônicos facilita a inserção no mercado de trabalho competitivo e flexível.

Todo o investimento veiculado pela mídia em torno do Programa Mais Médicos desconsiderou os critérios avaliativos de revalidação preconizados pelo MEC, segundo o Ministério da Saúde só poderão participar da seleção os médicos procedentes de países com proporção maior do que 1,8 médicos por mil habitantes (índice do Brasil). Isso quer dizer que os parâmetros quantitativos equivalem aos parâmetros qualitativos na formação educacional? Apesar do repúdio do CREMERJ a revalidação do diploma por parte dos médicos estrangeiros tornou-se dispensável, subentende-se nesta conjuntura que qualquer instituição de ensino estrangeira forma melhores profissionais do que o Brasil?

O Programa Mais Médicos também atinge outra questão não menos relevante,  a  relação de trabalho no SUS.  O Programa especifica o vínculo na forma de residência, para os brasileiros, e contrato por tempo determinado, inicialmente três anos, para os estrangeiros. Embora a remuneração destes profissionais esteja muito acima da realidade nacional, em torno de 10 mil reais, trata-se de precarização do trabalho,. O programa desconsidera a prerrogativa constitucional de acesso ao serviço público e com isso destitui os trabalhadores de direitos e garantias concernentes ao serviço estável (férias, 13º salário, triênio, licença maternidade, auxílio doença, insalubridade, periculosidade); tal a vulnerabilidade se expressa na subjetividade dos critérios de desligamento do contrato,  “o abandono do programa antes de 180 dias sem justificativa implicará na restituição de todos os valores referentes à ajuda de custo”.

O duelo de titãs  está justamente no conflito entre os programas de governo instituídos no SUS, ora afeto à precarização do trabalho como no Programa Mais Médicos,  ora  em política de enfrentamento ao trabalho precário como o Deprecariza-SUS. Criado desde 2006, o Programa de Desprecarização do Trabalho no SUS tem por finalidade corrigir a equivocado uso do trabalho precário na política de provimento e ampliação dos recursos humanos no SUS. Trata-se de pactuação nas três esferas de governo (federal, estadual, municipal) em atenção às deliberações da Organização Internacional do Trabalho (OIT); em defesa do trabalho decente; no combate ao processo de precarização do trabalho no SUS; em atenção aos Termos de Ajuste de Conduta (TACs) e medidas ajuizadas pelo Ministério Público Federal. Os objetivos e metas do programa visam o incentivo aos concursos públicos e a substituição gradual da força de trabalho precarizada do SUS.

Mas como combater o trabalho precário alimentando a precarização? Como construir um Sistema Único de Saúde democrático se as políticas de governo são autoritárias e excludentes? Será que os gringos da missão “Mais Médicos” têm noção que a miséria, o desemprego, as epidemias, a fome, a seca, enfim, os determinantes de saúde definidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) se escondem por trás da sórdida máquina administrativa corrupta? Será que eles conhecem o Brasil das grandes riquezas não tributadas? Dos latifúndios? Das licitações fraudulentas? Dos projetos sociais fantasmas? Dos acordos internacionais a custa do sacrifício do povo? 

Na medida em que crescem as contradições no SUS, mais comprometida fica a sua sustentabilidade nos pressupostos da Reforma Sanitária. Parafraseando Nando Reis “o mundo está ao contrário e ninguém reparou”.  Digo mais... assim como o mundo, o SUS também está ao contrário e ninguém está reparando...





segunda-feira, 2 de setembro de 2013

PRECARIZAÇÃO E PRECARIEDADES: OS DOIS CAMINHOS TORTUOSOS DO SUS

Ao longo dos dois últimos anos, venho desenvolvendo uma pesquisa social na área de Ensino na Saúde sobre o tema “Formação profissional e crise do trabalho contradições e desafios para o SUS”. O procedimento para coleta de dados abrange entrevistas e observação participante com o objetivo de captar opiniões, percepções e representações dos sujeitos sobre o processo de trabalho no SUS. 

Nas primeiras abordagens com o grupo de estudo foi possível perceber o estranhamento dos sujeitos em relação ao termo precarização do trabalho. Este fato motivou a leitura preliminar do conceito elaborado pelo Comitê Interinstitucional de Desprecarização do Trabalho no SUS. Após a leitura, as opiniões sobre a ocorrência do trabalho precário no SUS foram norteadas por expressões como “estranho”, “ruim”, “inaceitável”, “absurdo”, “péssimo. Embora seja um fenômeno cada vez mais freqüente no serviço público, os depoimentos coletados relacionaram a precarização do trabalho com precariedades, sem qualquer distinção conceitual.  

 “Este conceito está vago ele não é suficiente”; “quando eu li o conceito eu fiquei decepcionada”; “tem que envolver não só o  vínculo empregatício, mas  as condições reais de trabalho, materiais  e humanas”; “como eu disse, lutar  por condições melhores de trabalho internas, talvez a gente pudesse se unir e tentar”; “eu achei que iria envolver a falta de um grampeador por exemplo  (...)”;  “essa precarização abrange muito mais do que isso;” “isso é uma fatia da precarização.”;  “para mim, precário era uma coisa totalmente diferente, uma coisa deficitária. (precarização) (...) “as condições são relacionadas à  falta de recursos materiais, financeiros,  humanos”;  “desta forma aí como direitos trabalhistas”? “nós trabalhamos em situação bem precária em tudo”; “a gente trabalha com seres humanos em situações até mais precárias”; “a  precariedade não é só do funcionário , é  do atendimento também”.

No dicionário da língua portuguesa precariedade origina-se do latim - precariu - significa aquilo que foi concedido por graça e pode ser revogável, ou seja, instável, pouco durável, insustentável. Precariedade é um substantivo qualidade do precário. Para os sujeitos a precariedade no SUS representa a escassez de recursos materiais, a inadequação dos espaços, falta de logística, o desperdício, o desvio orçamentário, o atraso tecnológico e outras situações que comprometem a qualidade na prestação de serviço.  Já precarização do trabalho é um conceito sociológico concernente ao fenômeno global de caráter destrutivo derivado da reestruturação produtiva do capital. Caracteriza-se pela expropriação do trabalhador de direitos historicamente conquistados, distorção da dimensão ontológica do trabalho e comprometimento da qualidade dos serviços prestados. Antunes (2001, p.42) considera a precarização um conjunto de mutações e metamorfoses nas relações formais de trabalho, prestação de serviço, cargos comissionados, trabalho por tempo determinado, terceirizações, contratos, cooperativas etc. Esta babel de vínculos implica em perda de direitos, desinteresse pedagógico, discriminação, exclusão social, subemprego, desemprego, sujeição patronal e enfraquecimento sindical.


 A conjunção dos conceitos feita pelos sujeitos da pesquisa despertou o interesse investigar a questão pelo prisma filosófico de Gilles Delleuze e Felix Guattari.  Para os autores não é o conceito que funda a realidade, ao contrário, o conceito brota da realidade, serve para torná-la compreensível. O conceito é dual por natureza, serve para conservar ou transformar a realidade. O conceito é exclusivamente filosófico, resignifica o mundo a partir das seguintes características: tem estilo próprio (assinatura); define-se por multiplicidade (como um caleidoscópio); cria-se a partir de problemas; tem uma história; é uma heterogênese (são respostas possíveis); abrange o absoluto e o relativo ao mesmo tempo; é um acontecimento não é a essência ou a coisa; não é discursivo nem proposicional, este atributo pertence à ciência. “O conceito é um dispositivo, uma ferramenta, algo que é inventado, criado, produzido, a partir das condições dadas e que opera no âmbito mesmo destas condições” (GALLO, 2008, p. 43). 

De volta à questão da pesquisa, o que temos no SUS? precarização ou precariedades? Qual a diferença entre os termos? A quem interessa a precarização do trabalho e a precariedade do serviço? O que podemos esperar das instituições públicas que se beneficiam com a  precarização

Por ser um conceito, a precarização do trabalh tem história, foi criado a partir de problemas, é um dispositivo que permite a compreensão da realidade com duas dimensões distintas, de conformidade ou de transformação. Apesar de emanar da realidade, o conceito não corrige, não traz propostas, não tem energia, nem força para intervir no problema.  O fenômeno permite um novo pensar, é um acontecimento dinâmico, produtor de novos conceitos. Trata-se de um dispositivo que incomoda e pode provocar reflexão e ação.

As opiniões dos trabalhadores enriqueceram toda a condução da pesquisa, através deles pude perceber que a realidade deflagra a construção de conceitos, e a interlocução com outros conceitos.  Considerar precarização “apenas as relações de trabalho” para aquele que disponibilizam sua força de trabalho no SUS é muito pobre. Estes sujeitos sociais reivindicam um conceito mais amalgamado com outros elementos – condições de trabalho, dignidade, valorização, tecnologias, recursos materiais, direitos, garantias, enfim, a satisfação do trabalhador. Se o conceito existe para pensarmos o novo, o devir, que sirva para pensarmos um SUS que não transite pelos caminhos da precarização e precariedades.


Referências:
ANTUNES, Ricardo. A dialética do trabalho: escritos de Marx e Engels (org).  São Paulo: Expressão Popular, 2004.
_________. ALVES, Giovanni. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educ. Soc., Campinas, vol. 25, n. 87, p. 335-351, maio/ago. 2004 335 Disponível em http://www.cedes.unicamp.br . Acesso em: 18 fev 2012
__________. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2ª edição – São Paulo : Boitempo, 2009 ( mundo do Trabalho).
_________. Trabalho e precarização numa ordem neoliberal. In:  FRIGOTTO, Gaudêncio Cidadania negada : políticas de exclusão na educação e no trabalho.  Rio de Janeiro: Cortez Editora, 2001; cap.II p. 35 – 48.
GALLO, Silvio. Deleuze e a Educação. 2ª Edição, Belo Horizonte : Autêntica, 2008.


quarta-feira, 3 de abril de 2013

EXISTE VIDA INTELIGENTE POR TRÁS DOS MUROS?




Você se lembra dos Jetsons? Era um desenho animado da década de 80 produzido pela Hanna-Barbera Productions. A história tinha por protagonistas os  membros de uma família classe média do futuro – os Jetsons.  A idéia era apresentar de forma lúdica e satirizada previsões sobre o futuro da humanidade, carros voadores, cidades suspensas, trabalho automatizado, brinquedos de comando, os mais variados eletrodomésticos, alimentos instantâneos e robôs muitos robôs.

De fato, o século XXI confirma a previsão dos Jetsons. Constelação de satélites, estações espaciais, telefonia celular, alta tecnologia digital, nanotecnologia, internet, a despeito da revolução tecnológica este século rompe com as barreiras do tempo e do espaço. A informação, as relações diplomáticas e profissionais, o mercado, os relacionamentos, as manifestações culturais, o turismo e demais práticas sociais submetem-se hoje a uma nova lógica virtual e globalizada. 

A grande caixa de pandora que os Jetsons não previram está no fato que dentro desta aldeia global tecnológica e sem fronteiras existe um mundo cercado por muros. Na concepção de Milton Santos as relações de poder do colonialismo e do imperialismo desterritorializaram os espaços, mas não pagaram suas contas. Os muros foram fisicamente instalados, definindo quem fica dentro e quem permanece fora, permeiam as fronteiras nacionais, as prisões, os estádios, os condomínios, etc. Além deles há também os muros invisíveis, cujos alicerces, fundados em ideologias e interesses hegemônicos, são mais resistentes aos abalos sísmicos do que aqueles de alvenaria.  São os muros sociais, educacionais, étnicos, religiosos, culturais...  Muros que produzem dor, miséria, flagelos, massacres, exclusão, desemprego, invisibilidade, criminalidade, vícios e mais muros.

Interessante como os muros atravessam a história ocupando um espaço privilegiado na estrutura espacial e mental da humanidade. A antiguidade inaugura a muralha da China, a Bíblia descreve no livro de Neemias a reconstrução dos muros de Jerusalém, as maiores religiões monoteístas disputam o muro das Lamentações, a Guerra Fria ergue os muros de Berlim, O imperialismo norte-americano  mantém o muro do Império,  o etnocentrismo alimenta a cerca da separação entre Palestina e Israel e assim por diante.

Para além da finalidade de separar, proteger, excluir, dividir o muro provoca uma curiosidade acerca do outro mundo e o que há nele. Desperta um estranhamento, por isso assistimos aos filmes e documentários sobre as minorias étnicas, os confinamentos do sistema prisional, os guetos sejam eles de Varsóvia ou do crack; até os confinamentos cenográficos alcançam altos índices na preferência popular.  Junto ao estranhamento há a vontade de transgredir, de romper o muro. Durante os trinta anos do Muro de Berlim cerca de mil pessoas morreram tentando atravessá-lo, enquanto na fronteira dos EUA e México até hoje já são mais de dois mil mortos. A fronteira sempre exerce o fetiche do “gramado mais verde”.  Teríamos nós fascinação por muros? Ou eles são tão freqüentes que já fazem parte da nossa existência?

Embora os Jetsons anunciassem cidades suspensas com calçadas rolantes sem muros, o menino Lucas avisava que os muros estavam ali bem presentes.  Lucas era um personagem do livro “Sombras de reis barbudos” de José J. Veiga, que li na adolescência como atividade extraclasse. Trata-se de uma narrativa contada em primeira pessoa pelo menino do interior que conta a transformação de sua vida e da pequena cidade em que morava após a chegada da grande companhia. Um empreendimento, em analogia à ditadura militar, envolvendo homens de negócios, militares,  fiscais e vigias. Com o objetivo de cercear direitos, liberdades e exercer domínio sobre a população,  a  primeira ação da Cia na pequena cidade é levantar muros.

 De repente os muros, esses muros. Da noite para o dia eles brotaram assim retos, curvos, quebrados, descendo, subindo, dividindo as ruas ao meio conforme o traçado, separando amigos, tapando vistas, escurecendo, abafando. Até hoje não sabemos se eles foram construídos aí mesmo nos lugares ou trazidos já prontos e fincados aí. (...) pensávamos que não íamos nos acostumar; hoje podemos transitar por toda parte até de olhos fechados, como se os muros não existissem. (pág. 27)

Esse livro marcou minha adolescência, li várias vezes, me trazia um misto de condescendência com o pequeno Lucas e um pavor dos muros e da “Companhia”, sem ter na época a mínima noção do que se tratava. Hoje quando releio este trecho aumenta o meu pavor ao constatar que os Jetsons blefaram e que nos acostumamos com os muros. Transitamos neles falando nos celulares, com GPS, tablets conectados nas redes sociais, curtindo, compartilhando e comendo fast foods. Transitamos até de olhos fechados como se os muros não existissem... 

quarta-feira, 27 de março de 2013

A PSICOPATOLOGIA DO TRABALHO


DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho : estudo da psicopatologia do trabalho. 
5ª Ed. ampliada – São Paulo: Cortez – Oboré 1992.


Construir uma resenha significa ajustar o foco dos refletores para outro autor brilhar. Não é uma tarefa difícil quando se trata de Christophe Dejours, um pesquisador fascinado pelo mundo do trabalho e a vida psíquica do trabalhador, sua obra  transborda este fascínio e fornece um arcabouço teórico relevante através de uma linguagem simples, direta e sem tecnicismo.

Dejours tem 64 anos, nasceu e vive em Paris. É doutor em Medicina especialista em Medicina do trabalho, psiquiatra, psicanalista, ergonomista e ex- professor da Faculdade de Medicina de Paris.  Sua área de interesse psicossomática e psicopatologia do trabalho.  Este livro “A loucura do Trabalho: estudo da psicopatologia do trabalho foi editado na França em 1980, traduzido para o português e 1992, encontra-se na 5ª edição ampliada e na 13ª reimpressão.

Em suas primeiras palavras o autor afirma:

Falar da saúde é sempre difícil. Evocar o sofrimento e a doença é, em contrapartida, mais fácil: todo mundo faz. como se, a exemplo de Dante, cada um tivesse em si experiência suficiente para falar do inferno e nunca do paraíso.

Este é o ponto de partida do estudo. Evocar os sofrimentos que envolvem o trabalho e, por consequência,  afetam a vida mental do trabalhador.  Trata-se do objeto de interesse da psicopatologia  do trabalho,  uma ciência  que se  propõe a estudar a posição dos sujeitos nas relações de trabalho intermediada pela palavra, pelo ato de pensar e pela ressonância metafórica do poder estruturador.  Durante muito tempo a psicopatologia do trabalho ocupou uma posição periférica em relação às disciplinas tradicionais como a psicossociologia, psicanálise, psicologia abstrata, dentre outras. O atraso deveu-se, talvez, pela necessidade de situar o pesquisador como um interlocutor e não um especialista, um amadurecimento epistemológico que só o tempo pode desenvolver.  

Ao traçar a historicidade do tema, o autor apresenta três correntes que envolvem o conceito de saúde para a classe operária a partir do século XIX.  Em decorrência do  desenvolvimento capitalista, não havia um conceito de saúde para a  classe operária em virtude da luta pela sobrevivência. Eram tantos riscos que envolviam o trabalho que “viver para o operário era não morrer” (p.14).  A miséria operária torna-se um flagelo comparado a uma doença contagiosa, e à medida que esta miséria torna-se exposição social para as classes privilegiadas medidas intervencionistas são defendidas como: o movimento higienista, a valorização das  ciências morais e políticas    e os estudos dos grandes alienistas. Medidas referentes à higiene pública, combate de endemias e epidemias, legislações referentes ao trabalho, medicalização de controle e a ascensão  da psiquiatria tornam-se  palavras de ordem.

Em contrapartida ao movimento operário nascente, o Estado assume o papel de árbitro regulador e coator. Embora dito de forma contrária, o século XIX não alcançou um significativo progresso para a classe operária, as conquistas foram cerceadas em função das intermináveis discussões governamentais e legislativas que romperam décadas para plena consolidação.  

O movimento operário, em defesa do direito de mobilização social da classe trabalhadora, após décadas de luta sofreu dois  contundentes golpes: as duas  guerras mundiais. Os eventos exigiram um salto qualitativo da produção industrial movido por uma nova lógica produtiva, o taylorismo. Toda a destruição ocasionada pelas guerras favoreceu a implantação de medidas protetivas para a classe operária envolvendo a medicina do trabalho. Tais medidas priorizavam a saúde do corpo, “como ponto de impacto da exploração”. Para o autor, se o corpo é a primeira vitima, há de se trazer ara análise os mecanismos de submissão, domesticação e adestramento deste corpo. Inserir as estratégias de dominação do aparelho mental capazes de anular as resistências e transformar o corpo dócil. Se antes a saúde significava não morrer, neste período ter saúde significa condições de trabalho.

O alvorecer de um mundo sem guerras trouxe desilusão e crise civilizatória para a sociedade envolvendo a contestação do modo de vida. O movimento de maio de 68 declarou  luta contra a sociedade de consumo e contra a alienação, tendo por testemunhas, a música, as drogas e a  liberdade de expressão.
Os três momentos apontam para o sofrimento no trabalho, primeiro, em prol da  sobrevivência, e posteriormente, pela luta por condições  de trabalho e pela resistência à organização do trabalho alienante. Nesta lógica, o estudo tem por objetivo “explicar o campo não-comportamental ocupado - do mesmo modo que um inimigo ocupa um país - pelos atos impostos, gestos, ritmos, cadências e comportamentos produtivos” (p.25).

No primeiro capítulo o autor aborda as estratégias defensivas do subproletariado nas zonas periurbanas. A escolha dos sujeitos provém do alto índice de morbidez que envolve esta população e a sua tendência de não falar em doença e sofrimento. Estas atitudes segundo o autor revelam a ideologia da vergonha. Por ela recobre-se de silêncio a sexualidade e as patologias. “o corpo só pode ser aceito no silêncio dos órgãos”. "Somente o corpo que trabalha, o corpo produtivo do homem, como o corpo trabalhador da mulher são aceitos; tanto mais aceitos quanto menos se tiver necessidade de falar deles” (p. 32-33).

A condição de doença incapacita o corpo de produzir trabalho, uma característica manifesta nesta classe social. Por fazer parte de um contingente de mão-de-obra subempregada, a doença exprime a vergonha de parar de trabalhar. A ideologia defensiva compõe assim, um mecanismo de controle coletivo pela vergonha, tem pó objetivo mascarar\conter e ocultar uma ansiedade particularmente grave. No caso de falência deste mecanismo afloram-se manifestações individuais  como alcoolismo, atos de violência antissociais e loucura.
Outra atividade analisada pelo autor é o trabalho na linha de produção (atividades repetitivas, escritórios, bancos etc.) e os mecanismos de defesa individual contra a organização de trabalho. A análise sobre o trabalho taylorizado revela que o “modo operatório cientificamente estabelecido” desconsidera o know how coletivo, a criatividade e as especificidades individuais (sexo, idade, estatura estrutura mental etc.).  Este modelo propõe divisões ( operacionais, organizacionais e intelectuais) ignora o sentido do trabalho em prol da produtividade.

Neste sentido, a solidão, o isolamento e do trabalhador desencadeiam mecanismos simbólicos de defesa coletiva, e solidariedade frente às pausas forçadas na linha de produção.  Denominado por Taylor de vadiagem, este sistema de defesa coletiva são operações de regulagem psíquica e fazem parte da etapa de trabalho. Por mais que sejam limitadas estas operações se opõem ao sofrimento na linha de produção.

No capítulo 2 o autor destaca o sofrimento do trabalho através do conteúdo significativo da tarefa e no conteúdo ergonômico do trabalho.  O conteúdo significativo no trabalho envolve duas dimensões, a formação de imagem de si (sujeito) e símbolos, mensagens  e materiais  destinados  ao outro (Objeto). Todas estas significações concretas ou abstratas são indissociáveis e envolvem a dialética do Objeto, os conteúdos não se deixam separar. Qualquer tentativa de separação destes termos será arbitrária, “o investimento narcísico só pode renovar-se graças ao investimento objetal e vice-versa” (p. 50).

Quando a tarefa perde a significação há o sofrimento operário. Este  sofrimento envolve dois sintomas: a insatisfação e a ansiedade e  envolve também muitas variantes no discurso operário como: indignidade, inutilidade, vergonha, desqualificação, cansaço, falta de imaginação e de inteligência etc. A frustração e a tarefa desinteressante formam uma imagem narcísica “pálida, feia, miserável”.
   
No sentido ergonômico do trabalho, o trabalhador paga um alto custo relacionado aos sofrimentos físicos, somáticos e mentais  inseridos no posto de trabalho. Isto porque os projetos e instalações não levam em conta os princípios da ergonomia de concepção; cabendo à ergonomia de correção promover melhorias objetivas das condições de trabalho. Nestes termos, a intervenção ergonômica pode ser paliativa, aliada à organização do trabalho visando produzir sensação subjetiva de alívio para o aumento da produtividade. A intervenção ergonômica pode mascarar a real  vivência subjetiva do trabalhador e aliviar temporariamente o desconforto, por exemplo, postural do trabalhador; até que este seja substituído por outro, fenômeno denominado pelo autor de “uma espécie de edifício estratificado de prejuízos hierarquizados”. 

No capítulo 3 “O trabalho e o medo”, o autor aborda a presença do medo em todos os tipos de ocupações profissionais. Na análise ressalta a diferença semiológica entre  medo e  angústia. A angústia resulta de um conflito intrapsíquico(...) , pode  trata-se de oposição entre duas pulsões  entre dois desejos, entre dois sistemas etc. Por compreender a estrutura de personalidade requer uma investigação psicanalítica individual, já o medo corresponde ao aspecto concreto da realidade e exige sistemas defensivos específicos. O medo está intimamente ligado aos riscos relacionados à integridade física do trabalhador, asfixia, queimadura, fratura, ferimentos, morte etc.  Por isso, possui  caráter exterior, inerente ao trabalho, independente da vontade do trabalhador e na maioria das vezes coletivo. 

O trabalho que produz risco real para o trabalhador possui sinais diretos de medo norteiam o discurso do trabalhador,  um clima de ansiedade e de sofrimento mental, ”onde tudo lembra a possibilidade de ocorrência de um acidente ou incidente”.  “A fábrica é um Barril de pólvora”, “um vulcão em erupção”, “um animal furioso”, são  representações sociais do medo nos discursos dos trabalhadores.   Ao lado do risco real temos o risco suposto que desencadeia sistemas defensivos como problemas de sono, consumo de psicotrópicos e psicoestimulantes.
  
Assim como os discursos revelam a dimensão real do medo, há sinais indiretos do medo nas atitudes de negação. A resistência aos equipamentos de segurança individual, o  desprezo pelas normas de segurança, a inconsciência em relação ao risco enfrentado, o aumento do risco por atos de disputa e bravura, a gozação, o enquadramento dos jovens recém-chegados, o silêncio sobre o perigo extrínseco, configuram um mecanismo defensivo na tentativa de neutralizar o medo, de construir a coesão do grupo e de  garantir a produtividade.

O capítulo 4 apresenta o trabalho na aviação de caça como um contra-exemplo do sofrimento no trabalho. Sob as mais inóspitas condições, com um conteúdo de significação na tarefa e no trabalho de alto risco, a  atividade do piloto de caça se caracteriza por um contra-exemplo por desencadear nestes profissionais mecanismos de adaptação dos pilotos às condições de trabalho e aos valores morais da esquadra. Trata-se de   uma seleção com excelente nível de eficácia que abrange profissionais com aptidões em qualidade e quantidade, capazes de desenvolver uma estrutura mental norteada por satisfação e desafios frente ao perigo. Uma situação  que para o autor merece maior investigação.

Quanto à exploração do sentimento, o capítulo 5 apresenta uma análise complexa sobre o tema. Contrárias às doenças físicas que impedem a produtividade do trabalhador, as estruturas mentais em sofrimento podem favorecer a exploração e a subsunção do trabalhador. A frustração de uma telefonista, por exemplo, produz agressividade reativa, diante da agressividade  e da  realidade, a telefonista converte esta energia em adaptação à tarefa,  “(...) a telefonista transforma-se na artesão do seu próprio condicionamento” (p.102). A organização do trabalho obtém benefícios no sofrimento do trabalhador.

Outro exemplo refere-se à indústria química, na qual o processo industrial requer não só o pragmatismo, mas também domínio técnico e teórico sobre o processo de trabalho. Enquanto os operários recebem instruções restritas e insatisfatórias, baseadas em dicas e macetes, as chefias técnicas dominam a teoria desconectada da prática laboral. Assim podemos observar que a ignorância provoca ansiedade e a ansiedade impulsiona o trabalhador a enfrentar o medo e a ignorância. Diante das exigências este trabalhador inventa modos operativos, apropria-se dos macetes e truques, torna-se polivalente e faz a fábrica funcionar. Este mecanismo não confere ao trabalhador domínio técnico, teórico, um know how que possa protegê-lo dos riscos reais da atividade, ao contrário , pode expô-lo aos acidentes e à angústia psíquica.

No capítulo 6 “A organização do trabalho e a doença”, o autor levanta a hipótese de que a exploração mental possa servir como fonte de mais-valia nas tarefas desqualificadas. Nesta lógica, as neuroses, psicoses e depressões se manifestam como alterações do trabalho, através de  sistemas defensivos tornam-se  compensadas, mas se refletem no desempenho produtivo do trabalhador. Ao serem detectadas são eliminadas pela punição e exclusão do trabalho, assegurando a “assepsia mental” do trabalho. “O sofrimento mental e afadiga são proibidos de se manifestarem numa fábrica. Só a doença é admissível (p.121). daí a exigência do atestado medico e da medicalização do sofrimento, desqualificando a dimensão psíquica do conflito.

Em geral, a organização do trabalho não pode ser considerada uma fonte de doença mental, ela não cria doenças mentais. Segundo o autor o trabalho  pode criar situações favoráveis para as  descompensações  psicóticas  através da fadiga, do sistema de  frustração- agressividade reativa e a própria organização do trabalho como uma correia de transmissão de uma vontade externa. Na ocorrência do transtorno psíquico há uma contradição entre o tratamento proposto e a organização do trabalho. No caso da psicoterapia entra em confronto com os sistemas fóbicos defensivos que mantém a produtividade e a terapia psicofarmacológica produz efeitos colaterais que  interferem  na vigilância do trabalhador e no aumento de riscos para acidente de trabalho. Logo, o tratamento prescinde o afastamento do trabalhador convergindo para a cronicidade do problema numa celeuma com a Previdência Social.
Além da descompensação da doença mental há, na organização do trabalho, a ocorrência de doença somática. Na definição de  somatização  temos:
Um processo pelo qual um conflito que não consegue encontrar uma resolução mental desencadeia, no corpo desordens endócrino-metabólicas, ponto de partida da doença somática; pode atingir um sujeito com estrutura neurótica ou psicótica verdadeira. A somatização é encontrada, então, em sujeitos com estrutura psiconeurótica, quando o seu funcionamento mental é, momentaneamente, colocado fora de circuito”.  (p.127).
A organização do trabalho nos moldes rígidos para a produtividade pode afetar o equilíbrio psicossomático afetando a longevidade dos  indivíduos susceptíveis. Estas manifestações se aplicam em maior número às classes sociais desfavorecidas em decorrência de fatores como péssimas condições de trabalho, ineficácia de defesas mentais e uma organização do trabalho potencializadora de conflitos. Primeiro o trabalhador é acometido de insatisfação, em seguida de fadiga, uma fadiga misteriosa sem uma fisiopatologia concreta (simultaneamente psíquica e somática).

Dejours em suas considerações finais afirma que a organização do trabalho ignora os sonhos, projetos e esperanças do trabalhador, bloqueia a relação home-trabalho e cria insatisfações pelo modelo taylorizado. No entanto, o autor ressalta e reconhece a dialética que envolve o trabalho, principalmente quando a sua organização favorece o equilíbrio mental e a saúde do corpo, como foi visto no capítulo 4.

A subjetividade que envolve o trabalho na fábrica, no escritório, nos bancos aponta para o sofrimento, diante dele há por parte do trabalhador o emprego de sistemas defensivos e estas defesas escondem alguma coisa, talvez a resistência do corpo em tornar-se dócil. Assim a organização do trabalho traz ao debate alienação na perspectiva marxista e no sentido psiquiátrico, de substituição da vontade própria do Sujeito pela do Objeto. Uma transposição permeada pelo  sofrimento,  fadiga e dor;  “uma dor que permanece desconhecida não apenas dos observadores, mas também dos próprios trabalhadores”.

domingo, 24 de março de 2013

SOCIEDADE E CULTURA NA PRÁTICA PROFISSIONAL EM SAÚDE

CHINATOWN EM NITERÓI  


Esta semana conheci Isabela, uma jovem imigrante chinesa que procurou o serviço de saúde por motivo  de gravidez, aproximadamente com 10 semanas de gestação. Recém-chegada da China, Isabela trabalha em uma pastelaria no Centro de Niterói, como outros chineses em  situação análoga, a jovem não tem moradia, vive no estabelecimento que trabalha em condição precária, sua escolaridade é deficitária  e não fala português.  Recebeu o codinome 'Isabela' dos colegas da pastelaria logo assim que chegou ao Brasil. Para a consulta trouxe o passaporte e uma colega de trabalho que não falava mandarim. 


 O episódio foi hilário. A inexistência de comunicação era entremeada pelo aumento da voz da “intérprete”, por gestos exagerados, mímicas e desenhos sem êxito.  Enquanto isso, a jovem ria sem entender a complexidade da situação que nos encontrávamos. Diante disso, todo o histórico de Isabela resumiu-se a lacunas, na coleta de dados, na anamnese, nas queixas e também nas orientações que ela esperava receber. Embora o episódio tenha ocorrido num centro urbano, a barreira linguística impediu a comunicação, e conseqüentemente, todo o processo assistencial e educativo foi prejudicado. Apesar da jovem chinesa não estar em situação de enfermidade, a barreira cultural tornou o atendimento precário e vulnerável a uma situação de risco posterior. Uma derrota para a educação em saúde.

A partir deste relato de experiência faço as seguintes considerações: 
A práxis em saúde permite olhares, percepções e impressões sobre o cotidiano. O dia-a-dia laboral, longe de ser estático e constante é rico, dinâmico e cheio de subjetividades, sua análise exige uma concepção de saúde mais ampla e inclusiva, valorizando o pertencimento e a bagagem cognitiva, psicológica, social e cultural de cada usuário e do coletivo.

Morin (2011) afirma que o que há de mais biológico no ser humano é também o que há de mais impregnado de cultura, logo uma assistência em saúde que priorize a humanização e o acolhimento deve respeitar esta dimensão cultural que atravessa o biológico. O exemplo de Isabela revela a necessidade da comunicação em saúde como a primeira estratégia de ação, não só em áreas demarcadas pela presença de culturas indígenas como nos grandes centros urbanos onde há população imigrante; 

O SUS como um campo de disputa de poder, perpetua os pressupostos  cartesianos que legitimam como profissionais de saúde aqueles com formação na área biomédica. Esta tem sido uma visão institucional pobre e tímida que esvazia a assistência da dimensão cultural e social. O encontro com a futura mãe de um cidadão brasileiro seria muito mais proveitoso se houvesse a participação de outros profissionais como educadores, tradutores, sociólogos, antropólogos, assistentes sociais etc. 

A construção de novos valores e hábitos não ocorre de imediato; é processual. A educação em saúde, nestas condições, requer compreensão do sentido e pertencimento social, susceptível de segregação, isolamento, resistências e negações entre os sujeitos envolvidos. É importante considerar a questão cultural e social como fatores determinantes de saúde; a jovem, por exemplo, apresentava baixo peso por conta da dificuldade de adaptação aos hábitos alimentares do Brasil;

O encontro entre o “eu” e o “outro” deve ser esvaziado de pressupostos unilaterais. No caso da jovem gestante, o fato dela ter somente dezoito anos me fez “supor” que a situação vacinal estava regular; mas esta situação pertence à visão ocidental de saúde, pautada na  prevenção com imunobiológicos. Mas, na China é assim? Diante da dimensão do país, a região onde ela morava tinha acesso à unidade de saúde pública? O calendário vacinal é similar ao nosso? O desconhecimento sobre a cultura sanitária chinesa me conduziu a pressupostos equivocados.

Esta experiência me fez concordar com Dejours, pensar em saúde é sempre mais difícil do que pensar em doença.  Na situação de doença há ações imediatas e prioritárias, no entanto, a atenção ao sujeito saudável requer atitudes e estratégias de promoção à saúde como: considerar em cada usuário a diversidade, singularidade e a subjetividade, o habittus segundo Bourdieu; investir em educação não só para a saúde, mas para a vida no sentido de estimular a construção da cidadania e da ética na sociedade; priorizar a autonomia e emancipação do usuário; respeitar a vontade, verdades e limites do “outro” e não infringi-lo com o meu “eu”, vontades e verdades. 

Podemos concluir que a construção de um novo paradigma de saúde realmente eficiente e humanitário  depende de desconstrução e reconstrução de concepções sobre sujeitos, serviços e saúde.  Entender que o SUS é universal e tem por princípio filosófico a equidade e isto significa iguais condições de acesso e qualidade na assistência para os nacionais e estrangeiros dentro deste imenso território. Desta forma, podemos afirmar que por deficiência do sistema Isabela, uma “brachinesa”, não recebeu o atendimento pré-natal que merecia.   


Referências:

ARAÚJO Inesita Soares de e Janine Miranda Cardoso. Comunicação e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.
BRASIL. Lei Nº 8080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. In: Conselho Regional de Serviço Social – CRESS 11ª Região. Coletânea de Legislações: direitos de cidadania. Curitiba, nov. 2003.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma reformar o pensamento. 19ª edição – Rio de |janeiro: Bertrand Brasil, 2011
PAIM, Jairnilson Silva. O que é SUS? Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009

sábado, 23 de março de 2013

A ONDA


Resenha crítica do filme “A Onda”


            Schopenhauer adverte que a autêntica concisão da expressão consiste em dizer apenas, em todos os casos, o que é digno de ser dito, com a justa distinção entre o que é necessário e o que é supérfluo. Utilizo a expressão do filósofo para direcionar a minha análise sobre o filme “A Onda”. Procuro não incorrer na condenação do professor Rainer Wegner, mas compreender e salientar que ensinar, assim como toda prática social, tem caráter criativo, contraditório, pluridimensional, múltiplo e singular, a um só tempo; daí a complexidade e riscos do ofício.
            Após ser designado para a missão de ensinar durante uma semana autocracia para uma turma do  Ensino Médio, o professor Wegner resiste ao tema e inicia seus trabalhos sem um planejamento sistematizado. Ao que parece, desconsiderou a pesquisa, a análise, a crítica, a historicidade do tema em questão, optou pelo improviso, baseado em sua experiência, carisma e intuição. No primeiro dia, opta por aula expositiva, mas, diante dos protestos da turma quanto à falta de originalidade do assunto, direciona a proposta para o método indutivo, certo que todo conhecimento provém da experimentação. Propõe assim a turma vivenciar o autoritarismo fascista, através da disciplina rígida, do cerceamento da liberdade de expressão e uma construção artificial de unidade e força.
            Nesta trajetória, o professor renegou a subjetividade dos alunos (e a sua própria), a experiência, que deveria provocar indignação ao autoritarismo em defesa do Estado democrático, foi assimilada, pela grande maioria, na essência da tirania e opressão. Assim, o ambiente escolar, impregnado de ostentação social, rixa e discriminação favoreceu a dominação do imaginário desses jovens sequiosos de pertencimento, auto-estima e referências.
Na transposição didática, faltou discernimento para estabelecer o limite entre o ambiente educativo construído para compreensão do conteúdo e a evasão desses conceitos “para fora do laboratório”, assim como explorar sociologicamente as categorias relacionadas com autocracia como: liberdade, poder, censura, democracia, autoridade etc. Faltou também, o diálogo entre a teoria e a prática. No enfoque fenomenológico do interacionismo simbólico, podemos afirmar que nesta complexa cena social, os sujeitos, embora não escapando das determinações estruturais, possuem uma margem de autonomia para desempenhar seus papéis e, assim, construir de formas diversificadas suas práticas (Sirota).  Realidades diárias sendo definidas e redefinidas.
            O conteúdo ensinado produziu uma distorção ideológica, a “onda” passa de uma simples atividade extracurricular para um movimento organizado que ganha corpo, visibilidade e adeptos através de manifestações de desordem, depredações, preconceito, discriminação, intolerância e violência. Identifico neste processo, um abismo entre a prática da sala de aula e outras instâncias, supervisão pedagógica, coordenação de curso, direção, família e Estado. É óbvio que o professor precisa ter autonomia em sua prática, é o que pleiteamos em todas as falas, mas, a interação com outros campos do saber e estruturas de poder e decisão torna-se imprescindível para o sucesso do projeto.
Cabe ressaltar, a incoerência do discurso progressista e revolucionário do professor, resistente até aos padrões conservadores da escola, e a sua prática. Para Paulo Freire, o ato de conhecimento é também um ato político e não há neutralidade nesta prática. “Não é o discurso que ajuíza a prática, mas ao contrário, é a prática quem ajuíza o discurso”. No caso do professor Rainer, a conversão de anarquista simpatizante em ditador fascista faz-nos questionar a sua convicção ideológica. Parece que seu estilo de vida, naturalista, roqueiro, autêntico e irreverente  faz parte de um modismo, esvaziado de sentido. A sua práxis sucumbe ao poder. O posto de líder do movimento lhe confere um lugar de destaque diante dos alunos, dos pares e da direção da escola que exerce uma sedução perigosa sobre sua conduta. Ao ser confrontado pela esposa a despeito do direcionamento do projeto argumenta sobre o sucesso de suas aulas e a incapacidade dela conquistar a confiança e admiração dos alunos.
Diante do movimento crescente da onda, há uma voz dissonante, a aluna que veste “vermelho”. É gratificante poder constatar que em meio à massa alienada e manipulada, politicamente analfabeta, segundo a concepção freireana, há uma dissidência consciente, politicamente crítica e engajada; resistente a ação do professor e dos colegas, que busca o enfrentamento pela via ética e pacífica.
Lamentavelmente, o final não foi feliz; a onda ficou fora de controle. A última cena nos permite alguns questionamentos: as aberrações ideológicas e sociais “nascem” numa sala de aula? Como reconhecer a linha tênue entre ensinar e doutrinar? E o que fazer com alunos socialmente vulneráveis? Seria a metodologia equivocada responsável por homicídios, suicídios, bulling, homofobia etc. no ambiente escolar? Estaria o professor munido de teoria para interagir com a prática, e faria diferença o fato dele dispor dessa habilidade?
Não possuo respostas para estes questionamentos, mas percebo neste filme, como nos demais, a ausência de alguns sujeitos escolares, que mais uma vez permanecem ocultos, são eles: os pais e responsáveis dos alunos que perderam a oportunidade de perceber e intervir no processo de construção da onda, a direção da escola que mesmo diante de episódios de discriminação e violência, como ocorrido no campeonato de natação, manteve-se omissa, a professora/esposa que após detectar o fascínio que o marido exercia sobre os alunos sequer buscou alguma orientação pedagógica e o poder público que tratou os atos de vandalismo dos alunos como eventos casuais. Assim como iniciei a minha análise, concluo ressaltando que condenar as ações equivocadas do professor Wegner seria uma tarefa fácil; difícil, é utilizar o filme para uma autocrítica, no caráter pedagógico, principalmente quando contatamos que não somos auto-suficientes, que a sala de aula é um “caleidoscópio” – um ambiente vivo, complexo e dinâmico que produz múltiplas configurações, que o saber construído é algo além do saber ensinado e que o nosso cotidiano, a nossa prática, está repleta de contradições.     

PARA QUE SERVE A HISTÓRIA?


Para que serve a História?

Começamos pela resposta clássica de Marc Bloch: “a História é a ciência dos homens no transcurso do tempo”. O que isto quer dizer?
 Inicialmente, a História ocupava-se do passado, seu objeto estava temporalmente distante e desconectado do presente, a narrativa restringia-se aos heróis, mártires e grandes feitos, em busca da verdade absoluta baseado na rigidez do método e na neutralidade do pesquisador.
A perspectiva era evolutiva, o presente “moderno” era melhor que o passado “atrasado” e baseado nas grandes invenções e na tecnologia havia um ufanismo com relação ao futuro. Mas todo esse conceito ruiu diante do terror e da barbárie da I e II Guerras Mundiais. Sobraram incertezas e indagações sobre o porvir.
O século XX foi, nesse sentido, um divisor de águas no pensamento histórico.  O fazer histórico torna-se mais reflexivo, a análise mais crítica, o olhar multidimensional, voltado para a compreensão e não julgamento do fato, mais conceitual e menos factual.
 A metodologia torna-se de forma variada um campo de disputa e celeumas entre os historiadores.  Na busca do saber histórico não há certezas. As fontes também são inquiridas e relativizadas. Há de se perguntar sobre a existência em si do documento: o que vem a ser o documento? O que é capaz de nos dizer? Como podemos recuperar o sentido deste seu dizer? Por que tal documento existe? Quem o fez, em que circunstâncias e para que finalidade foi feita? Como e por quem foi produzido? Para que e para quem se fez esta produção? Qual é a relação do documento no universo da produção? Qual a finalidade e o caráter necessário que comanda a sua existência? Sobre o significado do documento como sujeito: por quem fala tal documento? De que história particular participou? Que ação e que pensamentos estão contidos em seu significado? O que faz perdurar como depósito da memória? Em que consiste seu ato de poder?
Não podemos esquecer que ao longo da história, muitas vezes, determinados grupos sociais se apropriam dos destinos de uma coletividade, ou seja, escrevem a história sob o prisma da dominação e dos mecanismos de funcionamento social que envolvem desigualdades e contradições. Estar no poder implica para o “grupo vencedor” ter acesso à maior parte dos recursos humanos com que conta a sociedade       (intelectuais, burocracia, sistemas de educação, de coerção, religião etc.) e a possibilidade de influenciar – incentivando, desestimulando e até proibindo – o que as pessoas falam e escrevem. Isso não quer dizer que outros grupos “os vencidos”, não possam contar a história a seu modo, do seu ponto de vista, a “subversão do fato”. Essas vozes, ou melhor, essas fontes de informações, estão nos discursos, falas, e escritos, mas também em monumentos, músicas, obras literárias, pinturas, obras de arte e até no silêncio.
Nessa lógica o que faz o historiador diante do Tempo Presente? Alguns não se arriscam na pesquisa, uma vez que não há base teórica do fato recente, a metodologia se vulnerabiliza diante da proximidade pesquisador/objeto, ambos compartilham a trajetória temporal.
As fontes, em tempos de avançada tecnologia da informação, perdem a prerrogativa e a legitimidade no lugar de memória. Há uma fluidez na velocidade dos fatos, das rupturas e permanências. Como buscar a especialização sobre um determinado assunto? Como esgotar a análise das fontes? Como produzir teoria diante de novos acontecimentos? Esses entendem que Tempo Presente é assunto para cientista político, sociólogo, jornalistas, comentaristas, economistas, diplomatas...
Para outros “destemidos” historiadores, o Tempo Presente requer sim, uma análise histórica. Claro que é um caminho escorregadio, não há o chão firme do passado, as fontes não estão em arquivos, bibliotecas, no subsolo, achados arqueológicos, ou nos porões; “elas estão no meio de nós”, nos jornais, revistas, na propaganda, no bar, nas prisões, nas comunidades, aqui no Tempo Presente.  Este Tempo, que rompe a velocidade da luz, exige do historiador a não especialização, olhar a história totalizante com olhar investigativo, mas consciente das incertezas.
 A análise histórica do Tempo Presente permite possibilidades, interage com outras análises, dialoga com as demais ciências humanas, torna possível a investigação e a interpretação do objeto sem paradigmas, só argumentações.
 Voltando a pergunta inicial, para que serve a História? Ela ajuda o indivíduo a compreender o passado e se situar no presente como interventor da sua história. Desperta uma visão crítica da sua realidade, afasta o senso comum e as manipulações. A partir dela, da história, torna-se possível ver e ler o mundo com novas lentes pelas quais a sociedade, o governo, as relações de poder, a legislação vigente, como resultado de forças sociais.  Forças estas que atravessam a miséria e as injustiças sociais como conseqüências de apropriações e privilégios de grupos dominantes.
Ensinar História é o ofício do professor–pesquisador, na concepção de Paulo Freire, e de  Marc Boch, o desafio é de trazer a história do mundo acadêmico, da erudição, para o cidadão comum. Decodificar a Babel de conceitos com a obrigação de difundir e esclarecer o processo histórico, sem fazer do ensino de História  narrativa literária ou ficção. Significa desenvolver no dia-a-dia a capacidade de “saber falar” às crianças e aos doutos.


sexta-feira, 22 de março de 2013

HABEMUS DENGUE!


Esta semana muitos amigos postaram no facebook uma charge interessante. A imagem  relacionava  o  fumacê de combate à dengue à fumaça branca liberada recentemente pela chaminé da Basílica de São Pedro. O anúncio da eleição de um novo Pontífice declamado por  Habemus Papam sendo resignificado por Habemus Dengue!

A semelhança para por aí. A fumaça romana apresenta novidades, um novo Papa, latino-americano, adepto da fraternidade e do combate à pobreza e avesso aos símbolos de ostentação. Já a fumaça tóxica pulverizada em solo brasileiro, anuncia uma continuidade perpetuada há mais de 25 anos que hostiliza a população com dor, sofrimento, medo, desgaste, desânimo, desconforto e óbitos. Uma longa lista de vidas ceifadas que mal sabemos quantificar. As notificações revelam mutações do vírus tipo 1,2,3,4 sem que nestes mais de vinte anos essa evolução frenética fosse interrompida  por uma intervenção estatal comprometida e eficiente.

Vivemos a cada ano o crescimento da epidemia com agravamento dos sintomas em face das comorbidades e da recontaminação. Iniciativas no âmbito da vigilância epidemiológica e sanitária caminham na contramão do processo de erradicação do problema. Faltam investimentos em pesquisa, em campanhas educativas que mobilizem a população, em medidas preventivas voltadas para coleta de lixo, controle dos vetores e divulgação de larvicidas e repelentes naturais, já que há a possibilidade de resistência do mosquito aos larvicidas e inseticidas já existentes.

Lamentavelmente o poder público utiliza seus recursos numa lógica curativa, priorizando uma força tarefa em função de hospitais de campanha, contratações de emergência, centros de hidratação, vagas em unidades intensivas, parcerias com laboratórios particulares etc. Medidas paliativas para suprir os meses de apatia e indiferença ao mosquito  e envolvimento com estádios, praças, shows, campanhas publicitárias e tantas outras superficialidades como se a epidemia fosse erradicada por uma simples ação da natureza.

Sim, Papa Francisco, habemus dengue! Carecemos da intervenção divina, porque habemus dengue, habemus inundações, habemus desmoronamentos e habemus políticos incompetentes.