Resenha crítica do
filme “A Onda”
Schopenhauer adverte que a autêntica
concisão da expressão consiste em dizer apenas, em todos os casos, o que é
digno de ser dito, com a justa distinção entre o que é necessário e o que é
supérfluo. Utilizo a expressão do filósofo para direcionar a minha análise
sobre o filme “A Onda”. Procuro não incorrer na condenação do professor Rainer
Wegner, mas compreender e salientar que ensinar, assim como toda prática social,
tem caráter criativo, contraditório,
pluridimensional, múltiplo e singular, a um só tempo; daí a complexidade e riscos
do ofício.
Após ser designado para a missão de
ensinar durante uma semana autocracia para uma turma do Ensino Médio, o professor Wegner resiste ao
tema e inicia seus trabalhos sem um planejamento sistematizado. Ao que parece, desconsiderou
a pesquisa, a análise, a crítica, a historicidade do tema em questão, optou
pelo improviso, baseado em sua experiência, carisma e intuição. No primeiro
dia, opta por aula expositiva, mas, diante dos protestos da turma quanto à falta
de originalidade do assunto, direciona a proposta para o método indutivo, certo
que todo conhecimento provém da experimentação. Propõe assim a turma vivenciar
o autoritarismo fascista, através da disciplina rígida, do cerceamento da
liberdade de expressão e uma construção artificial de unidade e força.
Nesta trajetória, o professor
renegou a subjetividade dos alunos (e a sua própria), a experiência, que
deveria provocar indignação ao autoritarismo em defesa do Estado democrático, foi
assimilada, pela grande maioria, na essência da tirania e opressão. Assim, o
ambiente escolar, impregnado de ostentação social, rixa e discriminação
favoreceu a dominação do imaginário desses jovens sequiosos de pertencimento,
auto-estima e referências.
Na
transposição didática, faltou discernimento para estabelecer o limite entre o
ambiente educativo construído para compreensão do conteúdo e a evasão desses
conceitos “para fora do laboratório”, assim como explorar sociologicamente as
categorias relacionadas com autocracia como: liberdade, poder, censura,
democracia, autoridade etc. Faltou também, o diálogo entre a teoria e a
prática. No enfoque fenomenológico do interacionismo simbólico, podemos afirmar
que nesta complexa cena social, os sujeitos, embora não escapando das
determinações estruturais, possuem uma margem de autonomia para desempenhar
seus papéis e, assim, construir de formas diversificadas suas práticas
(Sirota). Realidades diárias sendo
definidas e redefinidas.
O conteúdo ensinado produziu uma
distorção ideológica, a “onda” passa de uma simples atividade extracurricular para
um movimento organizado que ganha corpo, visibilidade e adeptos através de manifestações
de desordem, depredações, preconceito, discriminação, intolerância e violência.
Identifico neste processo, um abismo entre a prática da sala de aula e outras
instâncias, supervisão pedagógica, coordenação de curso, direção, família e
Estado. É óbvio que o professor precisa ter autonomia em sua prática, é o que pleiteamos
em todas as falas, mas, a interação com outros campos do saber e estruturas de
poder e decisão torna-se imprescindível para o sucesso do projeto.
Cabe
ressaltar, a incoerência do discurso progressista e revolucionário do
professor, resistente até aos padrões conservadores da escola, e a sua prática.
Para Paulo Freire, o ato de conhecimento é também um ato político e não há
neutralidade nesta prática. “Não é o discurso que ajuíza a prática, mas ao
contrário, é a prática quem ajuíza o discurso”. No caso do professor Rainer, a
conversão de anarquista simpatizante em ditador fascista faz-nos questionar a
sua convicção ideológica. Parece que seu estilo de vida, naturalista, roqueiro,
autêntico e irreverente faz parte de um
modismo, esvaziado de sentido. A sua práxis sucumbe ao poder. O posto de líder
do movimento lhe confere um lugar de destaque diante dos alunos, dos pares e da
direção da escola que exerce uma sedução perigosa sobre sua conduta. Ao ser
confrontado pela esposa a despeito do direcionamento do projeto argumenta sobre
o sucesso de suas aulas e a incapacidade dela conquistar a confiança e
admiração dos alunos.
Diante
do movimento crescente da onda, há uma voz dissonante, a aluna que veste
“vermelho”. É gratificante poder constatar que em meio à massa alienada e
manipulada, politicamente analfabeta, segundo a concepção freireana, há uma dissidência
consciente, politicamente crítica e engajada; resistente a ação do professor e
dos colegas, que busca o enfrentamento pela via ética e pacífica.
Lamentavelmente,
o final não foi feliz; a onda ficou fora de controle. A última cena nos permite
alguns questionamentos: as aberrações ideológicas e sociais “nascem” numa sala
de aula? Como reconhecer a linha tênue entre ensinar e doutrinar? E o que fazer
com alunos socialmente vulneráveis? Seria a metodologia equivocada responsável
por homicídios, suicídios, bulling, homofobia etc. no ambiente escolar? Estaria
o professor munido de teoria para interagir com a prática, e faria diferença o
fato dele dispor dessa habilidade?
Não
possuo respostas para estes questionamentos, mas percebo neste filme, como nos
demais, a ausência de alguns sujeitos escolares, que mais uma vez permanecem
ocultos, são eles: os pais e responsáveis dos alunos que perderam a
oportunidade de perceber e intervir no processo de construção da onda, a direção
da escola que mesmo diante de episódios de discriminação e violência, como
ocorrido no campeonato de natação, manteve-se omissa, a professora/esposa que
após detectar o fascínio que o marido exercia sobre os alunos sequer buscou alguma
orientação pedagógica e o poder público que tratou os atos de vandalismo dos
alunos como eventos casuais. Assim como iniciei a minha análise, concluo
ressaltando que condenar as ações equivocadas do professor Wegner seria uma
tarefa fácil; difícil, é utilizar o filme para uma autocrítica, no caráter
pedagógico, principalmente quando contatamos que não somos auto-suficientes,
que a sala de aula é um “caleidoscópio” – um ambiente vivo, complexo e dinâmico
que produz múltiplas configurações, que o saber construído é algo além do saber
ensinado e que o nosso cotidiano, a nossa prática, está repleta de
contradições.
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