sábado, 23 de março de 2013

A ONDA


Resenha crítica do filme “A Onda”


            Schopenhauer adverte que a autêntica concisão da expressão consiste em dizer apenas, em todos os casos, o que é digno de ser dito, com a justa distinção entre o que é necessário e o que é supérfluo. Utilizo a expressão do filósofo para direcionar a minha análise sobre o filme “A Onda”. Procuro não incorrer na condenação do professor Rainer Wegner, mas compreender e salientar que ensinar, assim como toda prática social, tem caráter criativo, contraditório, pluridimensional, múltiplo e singular, a um só tempo; daí a complexidade e riscos do ofício.
            Após ser designado para a missão de ensinar durante uma semana autocracia para uma turma do  Ensino Médio, o professor Wegner resiste ao tema e inicia seus trabalhos sem um planejamento sistematizado. Ao que parece, desconsiderou a pesquisa, a análise, a crítica, a historicidade do tema em questão, optou pelo improviso, baseado em sua experiência, carisma e intuição. No primeiro dia, opta por aula expositiva, mas, diante dos protestos da turma quanto à falta de originalidade do assunto, direciona a proposta para o método indutivo, certo que todo conhecimento provém da experimentação. Propõe assim a turma vivenciar o autoritarismo fascista, através da disciplina rígida, do cerceamento da liberdade de expressão e uma construção artificial de unidade e força.
            Nesta trajetória, o professor renegou a subjetividade dos alunos (e a sua própria), a experiência, que deveria provocar indignação ao autoritarismo em defesa do Estado democrático, foi assimilada, pela grande maioria, na essência da tirania e opressão. Assim, o ambiente escolar, impregnado de ostentação social, rixa e discriminação favoreceu a dominação do imaginário desses jovens sequiosos de pertencimento, auto-estima e referências.
Na transposição didática, faltou discernimento para estabelecer o limite entre o ambiente educativo construído para compreensão do conteúdo e a evasão desses conceitos “para fora do laboratório”, assim como explorar sociologicamente as categorias relacionadas com autocracia como: liberdade, poder, censura, democracia, autoridade etc. Faltou também, o diálogo entre a teoria e a prática. No enfoque fenomenológico do interacionismo simbólico, podemos afirmar que nesta complexa cena social, os sujeitos, embora não escapando das determinações estruturais, possuem uma margem de autonomia para desempenhar seus papéis e, assim, construir de formas diversificadas suas práticas (Sirota).  Realidades diárias sendo definidas e redefinidas.
            O conteúdo ensinado produziu uma distorção ideológica, a “onda” passa de uma simples atividade extracurricular para um movimento organizado que ganha corpo, visibilidade e adeptos através de manifestações de desordem, depredações, preconceito, discriminação, intolerância e violência. Identifico neste processo, um abismo entre a prática da sala de aula e outras instâncias, supervisão pedagógica, coordenação de curso, direção, família e Estado. É óbvio que o professor precisa ter autonomia em sua prática, é o que pleiteamos em todas as falas, mas, a interação com outros campos do saber e estruturas de poder e decisão torna-se imprescindível para o sucesso do projeto.
Cabe ressaltar, a incoerência do discurso progressista e revolucionário do professor, resistente até aos padrões conservadores da escola, e a sua prática. Para Paulo Freire, o ato de conhecimento é também um ato político e não há neutralidade nesta prática. “Não é o discurso que ajuíza a prática, mas ao contrário, é a prática quem ajuíza o discurso”. No caso do professor Rainer, a conversão de anarquista simpatizante em ditador fascista faz-nos questionar a sua convicção ideológica. Parece que seu estilo de vida, naturalista, roqueiro, autêntico e irreverente  faz parte de um modismo, esvaziado de sentido. A sua práxis sucumbe ao poder. O posto de líder do movimento lhe confere um lugar de destaque diante dos alunos, dos pares e da direção da escola que exerce uma sedução perigosa sobre sua conduta. Ao ser confrontado pela esposa a despeito do direcionamento do projeto argumenta sobre o sucesso de suas aulas e a incapacidade dela conquistar a confiança e admiração dos alunos.
Diante do movimento crescente da onda, há uma voz dissonante, a aluna que veste “vermelho”. É gratificante poder constatar que em meio à massa alienada e manipulada, politicamente analfabeta, segundo a concepção freireana, há uma dissidência consciente, politicamente crítica e engajada; resistente a ação do professor e dos colegas, que busca o enfrentamento pela via ética e pacífica.
Lamentavelmente, o final não foi feliz; a onda ficou fora de controle. A última cena nos permite alguns questionamentos: as aberrações ideológicas e sociais “nascem” numa sala de aula? Como reconhecer a linha tênue entre ensinar e doutrinar? E o que fazer com alunos socialmente vulneráveis? Seria a metodologia equivocada responsável por homicídios, suicídios, bulling, homofobia etc. no ambiente escolar? Estaria o professor munido de teoria para interagir com a prática, e faria diferença o fato dele dispor dessa habilidade?
Não possuo respostas para estes questionamentos, mas percebo neste filme, como nos demais, a ausência de alguns sujeitos escolares, que mais uma vez permanecem ocultos, são eles: os pais e responsáveis dos alunos que perderam a oportunidade de perceber e intervir no processo de construção da onda, a direção da escola que mesmo diante de episódios de discriminação e violência, como ocorrido no campeonato de natação, manteve-se omissa, a professora/esposa que após detectar o fascínio que o marido exercia sobre os alunos sequer buscou alguma orientação pedagógica e o poder público que tratou os atos de vandalismo dos alunos como eventos casuais. Assim como iniciei a minha análise, concluo ressaltando que condenar as ações equivocadas do professor Wegner seria uma tarefa fácil; difícil, é utilizar o filme para uma autocrítica, no caráter pedagógico, principalmente quando contatamos que não somos auto-suficientes, que a sala de aula é um “caleidoscópio” – um ambiente vivo, complexo e dinâmico que produz múltiplas configurações, que o saber construído é algo além do saber ensinado e que o nosso cotidiano, a nossa prática, está repleta de contradições.     

Nenhum comentário:

Postar um comentário