quarta-feira, 27 de março de 2013

A PSICOPATOLOGIA DO TRABALHO


DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho : estudo da psicopatologia do trabalho. 
5ª Ed. ampliada – São Paulo: Cortez – Oboré 1992.


Construir uma resenha significa ajustar o foco dos refletores para outro autor brilhar. Não é uma tarefa difícil quando se trata de Christophe Dejours, um pesquisador fascinado pelo mundo do trabalho e a vida psíquica do trabalhador, sua obra  transborda este fascínio e fornece um arcabouço teórico relevante através de uma linguagem simples, direta e sem tecnicismo.

Dejours tem 64 anos, nasceu e vive em Paris. É doutor em Medicina especialista em Medicina do trabalho, psiquiatra, psicanalista, ergonomista e ex- professor da Faculdade de Medicina de Paris.  Sua área de interesse psicossomática e psicopatologia do trabalho.  Este livro “A loucura do Trabalho: estudo da psicopatologia do trabalho foi editado na França em 1980, traduzido para o português e 1992, encontra-se na 5ª edição ampliada e na 13ª reimpressão.

Em suas primeiras palavras o autor afirma:

Falar da saúde é sempre difícil. Evocar o sofrimento e a doença é, em contrapartida, mais fácil: todo mundo faz. como se, a exemplo de Dante, cada um tivesse em si experiência suficiente para falar do inferno e nunca do paraíso.

Este é o ponto de partida do estudo. Evocar os sofrimentos que envolvem o trabalho e, por consequência,  afetam a vida mental do trabalhador.  Trata-se do objeto de interesse da psicopatologia  do trabalho,  uma ciência  que se  propõe a estudar a posição dos sujeitos nas relações de trabalho intermediada pela palavra, pelo ato de pensar e pela ressonância metafórica do poder estruturador.  Durante muito tempo a psicopatologia do trabalho ocupou uma posição periférica em relação às disciplinas tradicionais como a psicossociologia, psicanálise, psicologia abstrata, dentre outras. O atraso deveu-se, talvez, pela necessidade de situar o pesquisador como um interlocutor e não um especialista, um amadurecimento epistemológico que só o tempo pode desenvolver.  

Ao traçar a historicidade do tema, o autor apresenta três correntes que envolvem o conceito de saúde para a classe operária a partir do século XIX.  Em decorrência do  desenvolvimento capitalista, não havia um conceito de saúde para a  classe operária em virtude da luta pela sobrevivência. Eram tantos riscos que envolviam o trabalho que “viver para o operário era não morrer” (p.14).  A miséria operária torna-se um flagelo comparado a uma doença contagiosa, e à medida que esta miséria torna-se exposição social para as classes privilegiadas medidas intervencionistas são defendidas como: o movimento higienista, a valorização das  ciências morais e políticas    e os estudos dos grandes alienistas. Medidas referentes à higiene pública, combate de endemias e epidemias, legislações referentes ao trabalho, medicalização de controle e a ascensão  da psiquiatria tornam-se  palavras de ordem.

Em contrapartida ao movimento operário nascente, o Estado assume o papel de árbitro regulador e coator. Embora dito de forma contrária, o século XIX não alcançou um significativo progresso para a classe operária, as conquistas foram cerceadas em função das intermináveis discussões governamentais e legislativas que romperam décadas para plena consolidação.  

O movimento operário, em defesa do direito de mobilização social da classe trabalhadora, após décadas de luta sofreu dois  contundentes golpes: as duas  guerras mundiais. Os eventos exigiram um salto qualitativo da produção industrial movido por uma nova lógica produtiva, o taylorismo. Toda a destruição ocasionada pelas guerras favoreceu a implantação de medidas protetivas para a classe operária envolvendo a medicina do trabalho. Tais medidas priorizavam a saúde do corpo, “como ponto de impacto da exploração”. Para o autor, se o corpo é a primeira vitima, há de se trazer ara análise os mecanismos de submissão, domesticação e adestramento deste corpo. Inserir as estratégias de dominação do aparelho mental capazes de anular as resistências e transformar o corpo dócil. Se antes a saúde significava não morrer, neste período ter saúde significa condições de trabalho.

O alvorecer de um mundo sem guerras trouxe desilusão e crise civilizatória para a sociedade envolvendo a contestação do modo de vida. O movimento de maio de 68 declarou  luta contra a sociedade de consumo e contra a alienação, tendo por testemunhas, a música, as drogas e a  liberdade de expressão.
Os três momentos apontam para o sofrimento no trabalho, primeiro, em prol da  sobrevivência, e posteriormente, pela luta por condições  de trabalho e pela resistência à organização do trabalho alienante. Nesta lógica, o estudo tem por objetivo “explicar o campo não-comportamental ocupado - do mesmo modo que um inimigo ocupa um país - pelos atos impostos, gestos, ritmos, cadências e comportamentos produtivos” (p.25).

No primeiro capítulo o autor aborda as estratégias defensivas do subproletariado nas zonas periurbanas. A escolha dos sujeitos provém do alto índice de morbidez que envolve esta população e a sua tendência de não falar em doença e sofrimento. Estas atitudes segundo o autor revelam a ideologia da vergonha. Por ela recobre-se de silêncio a sexualidade e as patologias. “o corpo só pode ser aceito no silêncio dos órgãos”. "Somente o corpo que trabalha, o corpo produtivo do homem, como o corpo trabalhador da mulher são aceitos; tanto mais aceitos quanto menos se tiver necessidade de falar deles” (p. 32-33).

A condição de doença incapacita o corpo de produzir trabalho, uma característica manifesta nesta classe social. Por fazer parte de um contingente de mão-de-obra subempregada, a doença exprime a vergonha de parar de trabalhar. A ideologia defensiva compõe assim, um mecanismo de controle coletivo pela vergonha, tem pó objetivo mascarar\conter e ocultar uma ansiedade particularmente grave. No caso de falência deste mecanismo afloram-se manifestações individuais  como alcoolismo, atos de violência antissociais e loucura.
Outra atividade analisada pelo autor é o trabalho na linha de produção (atividades repetitivas, escritórios, bancos etc.) e os mecanismos de defesa individual contra a organização de trabalho. A análise sobre o trabalho taylorizado revela que o “modo operatório cientificamente estabelecido” desconsidera o know how coletivo, a criatividade e as especificidades individuais (sexo, idade, estatura estrutura mental etc.).  Este modelo propõe divisões ( operacionais, organizacionais e intelectuais) ignora o sentido do trabalho em prol da produtividade.

Neste sentido, a solidão, o isolamento e do trabalhador desencadeiam mecanismos simbólicos de defesa coletiva, e solidariedade frente às pausas forçadas na linha de produção.  Denominado por Taylor de vadiagem, este sistema de defesa coletiva são operações de regulagem psíquica e fazem parte da etapa de trabalho. Por mais que sejam limitadas estas operações se opõem ao sofrimento na linha de produção.

No capítulo 2 o autor destaca o sofrimento do trabalho através do conteúdo significativo da tarefa e no conteúdo ergonômico do trabalho.  O conteúdo significativo no trabalho envolve duas dimensões, a formação de imagem de si (sujeito) e símbolos, mensagens  e materiais  destinados  ao outro (Objeto). Todas estas significações concretas ou abstratas são indissociáveis e envolvem a dialética do Objeto, os conteúdos não se deixam separar. Qualquer tentativa de separação destes termos será arbitrária, “o investimento narcísico só pode renovar-se graças ao investimento objetal e vice-versa” (p. 50).

Quando a tarefa perde a significação há o sofrimento operário. Este  sofrimento envolve dois sintomas: a insatisfação e a ansiedade e  envolve também muitas variantes no discurso operário como: indignidade, inutilidade, vergonha, desqualificação, cansaço, falta de imaginação e de inteligência etc. A frustração e a tarefa desinteressante formam uma imagem narcísica “pálida, feia, miserável”.
   
No sentido ergonômico do trabalho, o trabalhador paga um alto custo relacionado aos sofrimentos físicos, somáticos e mentais  inseridos no posto de trabalho. Isto porque os projetos e instalações não levam em conta os princípios da ergonomia de concepção; cabendo à ergonomia de correção promover melhorias objetivas das condições de trabalho. Nestes termos, a intervenção ergonômica pode ser paliativa, aliada à organização do trabalho visando produzir sensação subjetiva de alívio para o aumento da produtividade. A intervenção ergonômica pode mascarar a real  vivência subjetiva do trabalhador e aliviar temporariamente o desconforto, por exemplo, postural do trabalhador; até que este seja substituído por outro, fenômeno denominado pelo autor de “uma espécie de edifício estratificado de prejuízos hierarquizados”. 

No capítulo 3 “O trabalho e o medo”, o autor aborda a presença do medo em todos os tipos de ocupações profissionais. Na análise ressalta a diferença semiológica entre  medo e  angústia. A angústia resulta de um conflito intrapsíquico(...) , pode  trata-se de oposição entre duas pulsões  entre dois desejos, entre dois sistemas etc. Por compreender a estrutura de personalidade requer uma investigação psicanalítica individual, já o medo corresponde ao aspecto concreto da realidade e exige sistemas defensivos específicos. O medo está intimamente ligado aos riscos relacionados à integridade física do trabalhador, asfixia, queimadura, fratura, ferimentos, morte etc.  Por isso, possui  caráter exterior, inerente ao trabalho, independente da vontade do trabalhador e na maioria das vezes coletivo. 

O trabalho que produz risco real para o trabalhador possui sinais diretos de medo norteiam o discurso do trabalhador,  um clima de ansiedade e de sofrimento mental, ”onde tudo lembra a possibilidade de ocorrência de um acidente ou incidente”.  “A fábrica é um Barril de pólvora”, “um vulcão em erupção”, “um animal furioso”, são  representações sociais do medo nos discursos dos trabalhadores.   Ao lado do risco real temos o risco suposto que desencadeia sistemas defensivos como problemas de sono, consumo de psicotrópicos e psicoestimulantes.
  
Assim como os discursos revelam a dimensão real do medo, há sinais indiretos do medo nas atitudes de negação. A resistência aos equipamentos de segurança individual, o  desprezo pelas normas de segurança, a inconsciência em relação ao risco enfrentado, o aumento do risco por atos de disputa e bravura, a gozação, o enquadramento dos jovens recém-chegados, o silêncio sobre o perigo extrínseco, configuram um mecanismo defensivo na tentativa de neutralizar o medo, de construir a coesão do grupo e de  garantir a produtividade.

O capítulo 4 apresenta o trabalho na aviação de caça como um contra-exemplo do sofrimento no trabalho. Sob as mais inóspitas condições, com um conteúdo de significação na tarefa e no trabalho de alto risco, a  atividade do piloto de caça se caracteriza por um contra-exemplo por desencadear nestes profissionais mecanismos de adaptação dos pilotos às condições de trabalho e aos valores morais da esquadra. Trata-se de   uma seleção com excelente nível de eficácia que abrange profissionais com aptidões em qualidade e quantidade, capazes de desenvolver uma estrutura mental norteada por satisfação e desafios frente ao perigo. Uma situação  que para o autor merece maior investigação.

Quanto à exploração do sentimento, o capítulo 5 apresenta uma análise complexa sobre o tema. Contrárias às doenças físicas que impedem a produtividade do trabalhador, as estruturas mentais em sofrimento podem favorecer a exploração e a subsunção do trabalhador. A frustração de uma telefonista, por exemplo, produz agressividade reativa, diante da agressividade  e da  realidade, a telefonista converte esta energia em adaptação à tarefa,  “(...) a telefonista transforma-se na artesão do seu próprio condicionamento” (p.102). A organização do trabalho obtém benefícios no sofrimento do trabalhador.

Outro exemplo refere-se à indústria química, na qual o processo industrial requer não só o pragmatismo, mas também domínio técnico e teórico sobre o processo de trabalho. Enquanto os operários recebem instruções restritas e insatisfatórias, baseadas em dicas e macetes, as chefias técnicas dominam a teoria desconectada da prática laboral. Assim podemos observar que a ignorância provoca ansiedade e a ansiedade impulsiona o trabalhador a enfrentar o medo e a ignorância. Diante das exigências este trabalhador inventa modos operativos, apropria-se dos macetes e truques, torna-se polivalente e faz a fábrica funcionar. Este mecanismo não confere ao trabalhador domínio técnico, teórico, um know how que possa protegê-lo dos riscos reais da atividade, ao contrário , pode expô-lo aos acidentes e à angústia psíquica.

No capítulo 6 “A organização do trabalho e a doença”, o autor levanta a hipótese de que a exploração mental possa servir como fonte de mais-valia nas tarefas desqualificadas. Nesta lógica, as neuroses, psicoses e depressões se manifestam como alterações do trabalho, através de  sistemas defensivos tornam-se  compensadas, mas se refletem no desempenho produtivo do trabalhador. Ao serem detectadas são eliminadas pela punição e exclusão do trabalho, assegurando a “assepsia mental” do trabalho. “O sofrimento mental e afadiga são proibidos de se manifestarem numa fábrica. Só a doença é admissível (p.121). daí a exigência do atestado medico e da medicalização do sofrimento, desqualificando a dimensão psíquica do conflito.

Em geral, a organização do trabalho não pode ser considerada uma fonte de doença mental, ela não cria doenças mentais. Segundo o autor o trabalho  pode criar situações favoráveis para as  descompensações  psicóticas  através da fadiga, do sistema de  frustração- agressividade reativa e a própria organização do trabalho como uma correia de transmissão de uma vontade externa. Na ocorrência do transtorno psíquico há uma contradição entre o tratamento proposto e a organização do trabalho. No caso da psicoterapia entra em confronto com os sistemas fóbicos defensivos que mantém a produtividade e a terapia psicofarmacológica produz efeitos colaterais que  interferem  na vigilância do trabalhador e no aumento de riscos para acidente de trabalho. Logo, o tratamento prescinde o afastamento do trabalhador convergindo para a cronicidade do problema numa celeuma com a Previdência Social.
Além da descompensação da doença mental há, na organização do trabalho, a ocorrência de doença somática. Na definição de  somatização  temos:
Um processo pelo qual um conflito que não consegue encontrar uma resolução mental desencadeia, no corpo desordens endócrino-metabólicas, ponto de partida da doença somática; pode atingir um sujeito com estrutura neurótica ou psicótica verdadeira. A somatização é encontrada, então, em sujeitos com estrutura psiconeurótica, quando o seu funcionamento mental é, momentaneamente, colocado fora de circuito”.  (p.127).
A organização do trabalho nos moldes rígidos para a produtividade pode afetar o equilíbrio psicossomático afetando a longevidade dos  indivíduos susceptíveis. Estas manifestações se aplicam em maior número às classes sociais desfavorecidas em decorrência de fatores como péssimas condições de trabalho, ineficácia de defesas mentais e uma organização do trabalho potencializadora de conflitos. Primeiro o trabalhador é acometido de insatisfação, em seguida de fadiga, uma fadiga misteriosa sem uma fisiopatologia concreta (simultaneamente psíquica e somática).

Dejours em suas considerações finais afirma que a organização do trabalho ignora os sonhos, projetos e esperanças do trabalhador, bloqueia a relação home-trabalho e cria insatisfações pelo modelo taylorizado. No entanto, o autor ressalta e reconhece a dialética que envolve o trabalho, principalmente quando a sua organização favorece o equilíbrio mental e a saúde do corpo, como foi visto no capítulo 4.

A subjetividade que envolve o trabalho na fábrica, no escritório, nos bancos aponta para o sofrimento, diante dele há por parte do trabalhador o emprego de sistemas defensivos e estas defesas escondem alguma coisa, talvez a resistência do corpo em tornar-se dócil. Assim a organização do trabalho traz ao debate alienação na perspectiva marxista e no sentido psiquiátrico, de substituição da vontade própria do Sujeito pela do Objeto. Uma transposição permeada pelo  sofrimento,  fadiga e dor;  “uma dor que permanece desconhecida não apenas dos observadores, mas também dos próprios trabalhadores”.

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