DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho : estudo da
psicopatologia do trabalho.
5ª Ed. ampliada – São Paulo: Cortez – Oboré 1992.
Construir uma resenha significa
ajustar o foco dos refletores para outro autor brilhar. Não é uma tarefa
difícil quando se trata de Christophe Dejours, um pesquisador fascinado pelo
mundo do trabalho e a vida psíquica do trabalhador, sua obra transborda este fascínio e fornece um
arcabouço teórico relevante através de uma linguagem simples, direta e sem
tecnicismo.
Dejours tem 64 anos, nasceu e
vive em Paris. É doutor em Medicina especialista em Medicina do trabalho,
psiquiatra, psicanalista, ergonomista e ex- professor da Faculdade de Medicina
de Paris. Sua área de interesse psicossomática
e psicopatologia do trabalho. Este livro
“A loucura do Trabalho: estudo da psicopatologia do trabalho foi editado na
França em 1980, traduzido para o português e 1992, encontra-se na 5ª edição
ampliada e na 13ª reimpressão.
Em suas primeiras palavras o
autor afirma:
Falar da saúde é sempre difícil. Evocar o
sofrimento e a doença é, em contrapartida, mais fácil: todo mundo faz. como se,
a exemplo de Dante, cada um tivesse em si experiência suficiente para falar do
inferno e nunca do paraíso.
Este é o ponto de partida do estudo. Evocar os sofrimentos
que envolvem o trabalho e, por consequência, afetam a vida mental do trabalhador. Trata-se do objeto de interesse da psicopatologia
do trabalho, uma ciência que se propõe a estudar a posição dos sujeitos nas relações de trabalho intermediada pela palavra, pelo ato de pensar e pela ressonância metafórica do poder estruturador. Durante muito tempo a psicopatologia do trabalho ocupou uma posição periférica em relação às disciplinas
tradicionais como a psicossociologia, psicanálise, psicologia abstrata, dentre
outras. O atraso deveu-se, talvez, pela necessidade de situar o pesquisador como um interlocutor e não um especialista, um amadurecimento epistemológico que só o tempo pode desenvolver.
Ao traçar a historicidade do
tema, o autor apresenta três correntes que envolvem o conceito de saúde para a
classe operária a partir do século XIX. Em
decorrência do desenvolvimento
capitalista, não havia um conceito de saúde para a classe operária em virtude da luta pela
sobrevivência. Eram tantos riscos que envolviam o trabalho que “viver para o
operário era não morrer” (p.14). A
miséria operária torna-se um flagelo comparado a uma doença contagiosa, e à
medida que esta miséria torna-se exposição social para as classes privilegiadas
medidas intervencionistas são defendidas como: o movimento higienista, a
valorização das ciências morais e
políticas e os
estudos dos grandes alienistas. Medidas referentes à higiene pública, combate
de endemias e epidemias, legislações referentes ao trabalho, medicalização de
controle e a ascensão da psiquiatria
tornam-se palavras de ordem.
Em contrapartida ao movimento
operário nascente, o Estado assume o papel de árbitro regulador e coator.
Embora dito de forma contrária, o século XIX não alcançou um significativo
progresso para a classe operária, as conquistas foram cerceadas em função das
intermináveis discussões governamentais e legislativas que romperam décadas
para plena consolidação.
O movimento operário, em defesa
do direito de mobilização social da classe trabalhadora, após décadas de luta
sofreu dois contundentes golpes: as duas
guerras mundiais. Os eventos exigiram um
salto qualitativo da produção industrial movido por uma nova lógica produtiva,
o taylorismo. Toda a destruição ocasionada
pelas guerras favoreceu a implantação de medidas protetivas para a classe
operária envolvendo a medicina do trabalho. Tais medidas priorizavam a saúde do
corpo, “como ponto de impacto da exploração”. Para o autor, se o corpo é a
primeira vitima, há de se trazer ara análise os mecanismos de submissão,
domesticação e adestramento deste corpo. Inserir as estratégias de dominação do
aparelho mental capazes de anular as resistências e transformar o corpo dócil.
Se antes a saúde significava não morrer, neste período ter saúde significa
condições de trabalho.
O alvorecer de um mundo sem
guerras trouxe desilusão e crise civilizatória para a sociedade envolvendo a
contestação do modo de vida. O movimento de maio de 68 declarou luta contra a sociedade de consumo e contra a
alienação, tendo por testemunhas, a música, as drogas e a liberdade de expressão.
Os três momentos apontam para o
sofrimento no trabalho, primeiro, em prol da sobrevivência, e posteriormente, pela luta por
condições de trabalho e pela resistência
à organização do trabalho alienante. Nesta lógica, o estudo tem por objetivo “explicar o campo não-comportamental ocupado
- do mesmo modo que um inimigo ocupa um país - pelos atos impostos, gestos,
ritmos, cadências e comportamentos produtivos” (p.25).
No primeiro capítulo o autor
aborda as estratégias defensivas do subproletariado nas zonas periurbanas. A
escolha dos sujeitos provém do alto índice de morbidez que envolve esta
população e a sua tendência de não falar em doença e sofrimento. Estas atitudes
segundo o autor revelam a ideologia da
vergonha. Por ela recobre-se de silêncio a sexualidade e as patologias. “o
corpo só pode ser aceito no silêncio dos órgãos”. "Somente o corpo que trabalha, o corpo produtivo do homem, como o corpo
trabalhador da mulher são aceitos; tanto mais aceitos quanto menos se tiver
necessidade de falar deles” (p. 32-33).
A condição de doença incapacita o
corpo de produzir trabalho, uma característica manifesta nesta classe social.
Por fazer parte de um contingente de mão-de-obra subempregada, a doença exprime
a vergonha de parar de trabalhar. A ideologia defensiva compõe assim, um
mecanismo de controle coletivo pela vergonha, tem pó objetivo mascarar\conter e
ocultar uma ansiedade particularmente grave. No caso de falência deste
mecanismo afloram-se manifestações individuais como alcoolismo, atos de violência
antissociais e loucura.
Outra atividade analisada pelo
autor é o trabalho na linha de produção (atividades repetitivas, escritórios,
bancos etc.) e os mecanismos de defesa individual contra a organização de
trabalho. A análise sobre o trabalho taylorizado revela que o “modo operatório
cientificamente estabelecido” desconsidera o know how coletivo, a criatividade e as especificidades individuais
(sexo, idade, estatura estrutura mental etc.).
Este modelo propõe divisões ( operacionais, organizacionais e
intelectuais) ignora o sentido do trabalho em prol da produtividade.
Neste sentido, a solidão, o
isolamento e do trabalhador desencadeiam mecanismos simbólicos de defesa
coletiva, e solidariedade frente às pausas forçadas na linha de produção. Denominado por Taylor de vadiagem, este
sistema de defesa coletiva são operações de regulagem psíquica e fazem parte da
etapa de trabalho. Por mais que sejam limitadas estas operações se opõem ao
sofrimento na linha de produção.
No capítulo 2 o autor destaca o
sofrimento do trabalho através do conteúdo significativo da tarefa e no
conteúdo ergonômico do trabalho. O
conteúdo significativo no trabalho envolve duas dimensões, a formação de imagem
de si (sujeito) e símbolos, mensagens e
materiais destinados ao outro (Objeto). Todas estas significações
concretas ou abstratas são indissociáveis e envolvem a dialética do Objeto, os
conteúdos não se deixam separar. Qualquer tentativa de separação destes termos
será arbitrária, “o investimento
narcísico só pode renovar-se graças ao investimento objetal e vice-versa” (p.
50).
Quando a tarefa perde a
significação há o sofrimento operário. Este sofrimento envolve dois sintomas: a
insatisfação e a ansiedade e envolve
também muitas variantes no discurso operário como: indignidade, inutilidade, vergonha,
desqualificação, cansaço, falta de imaginação e de inteligência etc. A
frustração e a tarefa desinteressante formam uma imagem narcísica “pálida,
feia, miserável”.
No sentido ergonômico do
trabalho, o trabalhador paga um alto custo relacionado aos sofrimentos físicos,
somáticos e mentais inseridos no posto
de trabalho. Isto porque os projetos e instalações não levam em conta os
princípios da ergonomia de concepção; cabendo à ergonomia de correção promover melhorias
objetivas das condições de trabalho. Nestes termos, a intervenção ergonômica
pode ser paliativa, aliada à organização do trabalho visando produzir sensação
subjetiva de alívio para o aumento da produtividade. A intervenção ergonômica
pode mascarar a real vivência subjetiva
do trabalhador e aliviar temporariamente o desconforto, por exemplo, postural
do trabalhador; até que este seja substituído por outro, fenômeno denominado
pelo autor de “uma espécie de edifício
estratificado de prejuízos hierarquizados”.
No capítulo 3 “O trabalho e o
medo”, o autor aborda a presença do medo em todos os tipos de ocupações
profissionais. Na análise ressalta a diferença semiológica entre medo e
angústia. A angústia resulta de um
conflito intrapsíquico(...) , pode
trata-se de oposição entre duas pulsões entre
dois desejos, entre dois sistemas etc. Por compreender a estrutura de
personalidade requer uma investigação psicanalítica individual, já o medo
corresponde ao aspecto concreto da realidade e exige sistemas defensivos
específicos. O medo está intimamente ligado aos riscos relacionados à
integridade física do trabalhador, asfixia, queimadura, fratura, ferimentos,
morte etc. Por isso, possui caráter exterior, inerente ao trabalho,
independente da vontade do trabalhador e na maioria das vezes coletivo.
O trabalho que produz risco real
para o trabalhador possui sinais diretos de medo norteiam o discurso do
trabalhador, um clima de ansiedade e de
sofrimento mental, ”onde tudo lembra a
possibilidade de ocorrência de um acidente ou incidente”. “A fábrica é um Barril de pólvora”, “um vulcão
em erupção”, “um animal furioso”, são
representações sociais do medo nos discursos dos trabalhadores. Ao
lado do risco real temos o risco suposto que desencadeia sistemas defensivos como
problemas de sono, consumo de psicotrópicos e psicoestimulantes.
Assim como os discursos revelam a
dimensão real do medo, há sinais indiretos do medo nas atitudes de negação. A
resistência aos equipamentos de segurança individual, o desprezo pelas normas de segurança, a
inconsciência em relação ao risco enfrentado, o aumento do risco por atos de
disputa e bravura, a gozação, o enquadramento dos jovens recém-chegados, o
silêncio sobre o perigo extrínseco, configuram um mecanismo defensivo na
tentativa de neutralizar o medo, de construir a coesão do grupo e de garantir a produtividade.
O capítulo 4 apresenta o trabalho
na aviação de caça como um contra-exemplo do sofrimento no trabalho. Sob as
mais inóspitas condições, com um conteúdo de significação na tarefa e no
trabalho de alto risco, a atividade do
piloto de caça se caracteriza por um contra-exemplo por desencadear nestes
profissionais mecanismos de adaptação dos pilotos às condições de trabalho e
aos valores morais da esquadra. Trata-se de
uma seleção com excelente nível
de eficácia que abrange profissionais com aptidões em qualidade e quantidade, capazes
de desenvolver uma estrutura mental norteada por satisfação e desafios frente
ao perigo. Uma situação que para o autor
merece maior investigação.
Quanto à exploração do
sentimento, o capítulo 5 apresenta uma análise complexa sobre o tema.
Contrárias às doenças físicas que impedem a produtividade do trabalhador, as
estruturas mentais em sofrimento podem favorecer a exploração e a subsunção do
trabalhador. A frustração de uma telefonista, por exemplo, produz agressividade
reativa, diante da agressividade e
da realidade, a telefonista converte
esta energia em adaptação à tarefa, “(...) a telefonista transforma-se na
artesão do seu próprio condicionamento” (p.102). A organização do trabalho
obtém benefícios no sofrimento do trabalhador.
Outro exemplo refere-se à
indústria química, na qual o processo industrial requer não só o pragmatismo,
mas também domínio técnico e teórico sobre o processo de trabalho. Enquanto os
operários recebem instruções restritas e insatisfatórias, baseadas em dicas e macetes,
as chefias técnicas dominam a teoria desconectada da prática laboral. Assim
podemos observar que a ignorância provoca ansiedade e a ansiedade impulsiona o
trabalhador a enfrentar o medo e a ignorância. Diante das exigências este
trabalhador inventa modos operativos, apropria-se dos macetes e truques, torna-se
polivalente e faz a fábrica funcionar. Este mecanismo não confere ao
trabalhador domínio técnico, teórico, um know
how que possa protegê-lo dos riscos reais da atividade, ao contrário , pode
expô-lo aos acidentes e à angústia psíquica.
No capítulo 6 “A organização do
trabalho e a doença”, o autor levanta a hipótese de que a exploração mental possa
servir como fonte de mais-valia nas tarefas desqualificadas. Nesta lógica, as
neuroses, psicoses e depressões se manifestam como alterações do trabalho,
através de sistemas defensivos tornam-se compensadas, mas se refletem no desempenho
produtivo do trabalhador. Ao serem detectadas são eliminadas pela punição e exclusão
do trabalho, assegurando a “assepsia mental” do trabalho. “O sofrimento mental e afadiga são proibidos de se manifestarem numa
fábrica. Só a doença é admissível (p.121). daí a exigência do atestado
medico e da medicalização do sofrimento, desqualificando a dimensão psíquica do
conflito.
Em geral, a organização do
trabalho não pode ser considerada uma fonte de doença mental, ela não cria
doenças mentais. Segundo o autor o trabalho
pode criar situações favoráveis para as
descompensações psicóticas através da fadiga, do sistema de frustração- agressividade reativa e a própria
organização do trabalho como uma correia de transmissão de uma vontade externa.
Na ocorrência do transtorno psíquico há uma contradição entre o tratamento
proposto e a organização do trabalho. No caso da psicoterapia entra em
confronto com os sistemas fóbicos defensivos que mantém a produtividade e a
terapia psicofarmacológica produz efeitos colaterais que interferem
na vigilância do trabalhador e no aumento de riscos para acidente de
trabalho. Logo, o tratamento prescinde o afastamento do trabalhador convergindo
para a cronicidade do problema numa celeuma com a Previdência Social.
Além da descompensação da doença
mental há, na organização do trabalho, a ocorrência de doença somática. Na
definição de somatização temos:
Um processo pelo qual um conflito que não
consegue encontrar uma resolução mental desencadeia, no corpo desordens
endócrino-metabólicas, ponto de partida da doença somática; pode atingir um
sujeito com estrutura neurótica ou psicótica verdadeira. A somatização é
encontrada, então, em sujeitos com estrutura psiconeurótica, quando o seu
funcionamento mental é, momentaneamente, colocado fora de circuito”. (p.127).
A organização do trabalho nos
moldes rígidos para a produtividade pode afetar o equilíbrio psicossomático afetando
a longevidade dos indivíduos
susceptíveis. Estas manifestações se aplicam em maior número às classes sociais
desfavorecidas em decorrência de fatores como péssimas condições de trabalho,
ineficácia de defesas mentais e uma organização do trabalho potencializadora de
conflitos. Primeiro o trabalhador é acometido de insatisfação, em seguida de
fadiga, uma fadiga misteriosa sem uma fisiopatologia concreta (simultaneamente
psíquica e somática).
Dejours em suas considerações finais
afirma que a organização do trabalho ignora os sonhos, projetos e esperanças do
trabalhador, bloqueia a relação home-trabalho e cria insatisfações pelo modelo
taylorizado. No entanto, o autor ressalta e reconhece a dialética que envolve o
trabalho, principalmente quando a sua organização favorece o equilíbrio mental
e a saúde do corpo, como foi visto no capítulo 4.
A subjetividade que envolve o
trabalho na fábrica, no escritório, nos bancos aponta para o sofrimento, diante
dele há por parte do trabalhador o emprego de sistemas defensivos e estas defesas
escondem alguma coisa, talvez a resistência do corpo em tornar-se dócil. Assim
a organização do trabalho traz ao debate alienação na perspectiva marxista e
no sentido psiquiátrico, de substituição da vontade própria do Sujeito pela do
Objeto. Uma transposição permeada pelo sofrimento,
fadiga e dor; “uma dor
que permanece desconhecida não apenas dos observadores, mas também dos próprios
trabalhadores”.
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