Este projeto nasce de interlocuções
teórico-práticas motivadas pelo cotidiano na Unidade Básica de Saúde, pelas reflexões compartilhadas no Mestrado Ensino na Saúde e pela necessidade de
aplicar os saberes, até aqui gerados, em ações transformadoras em saúde.
Na condição de uma proposta de intervenção em
serviço, cuja temática envolve a
formação pedagógica e a precarização do trabalho, busca-se primeiramente incorporar o método
científico à realidade vivenciada in loco.
Romper com o distanciamento do objeto, com a demarcação metodológica em
definir e delimitar lugares sociais, áreas do conhecimento e linhas de pesquisa,
entendendo que nas práticas cotidianas os saberes fluem pelos espaços em
trânsito livre, sem fronteiras que impeçam conexões cognitivas. O processo de
ensinar/aprender se efetiva nas ações, no entremeio, sem início e sem fim.
Posteriormente busca-se enfrentar o desafio de humanizar dialeticamente as
relações em saúde, hoje cada vez mais desumanizadas pela precarização do
trabalho, através de um espaço lúdico de aprendizagem destinado ao desenvolvimento
de autonomia e de novas possibilidades de pensar e recriar as práticas em
saúde.
A ideia estrutura-se na estética
rizomática [1] do
conhecimento, em fazer emergir possibilidades de aprendizagem pelas brechas do
processo de trabalho instituído. Nesta lógica, os saberes se pulverizam pela transversalidade,
pela margem, no momento da informalidade, da descontração, da conversa, do
cafezinho. Uma rota de fuga à rotina estressante do trabalho e ao modelo educativo
convencional de sala de aula, lápis e papel, palestras, apostilas etc. Neste pit stop não há espaço para tutores, são
todos aprendizes, mais ou menos experientes, que compartilham os sabores e
dissabores das práticas em saúde. O
importante é provocar a pedagogia do risco para o exercício do pensamento, das inquietações,
das reflexões, da autocrítica e da coragem de construir as próprias conexões.
Mas, qual a relevância deste projeto?
Embora obscuro em nosso meio, a precarização do trabalho [2]
é um fenômeno mundial procedente do pensamento neoliberal e privatista,
caracterizado pela exploração da mais–valia, supressão de direitos e garantias
trabalhistas(2). No Sistema
Único de Saúde, um significativo contingente de profissionais vive hoje mutações
reconhecidamente precarizadas nas relações de trabalho; contratação por autonomia
(RPA), cargo em comissão, terceirização, cooperativas, organizações sociais de saúde
(OSS) etc. Em sua trajetória organizacional, o SUS incorporou estas mutações
como uma relação risco-benefício em torno da sustentabilidade do sistema, fato
impeditivo ao enfrentamento da precarização do trabalho de modo mais
contundente.
Embora restrita a uma determinada parcela de
trabalhadores, a precarização não se delimita, ela se propaga difusamente e
retroalimenta o sistema e as ações em saúde. Estes efeitos tomam enormes proporções
em função da demanda de pessoal, da inexistência de qualquer critério seletivo
no ato da contratação, da falta de qualidade nos cursos técnicos e superiores, das
remunerações aviltantes que são oferecidas aos profissionais, da carga horária
excedente às normas trabalhistas, da disparidade funcional e salarial entre os
membros da equipe etc.
Em cada “novo” profissional que “adentra” ao serviço é
possível constatar a predominância do modelo
tecnicista, hierarquizado, curativo e as lacunas curriculares sobre a legislação
do SUS e o apel das ações sistematizadas para atenção primária à saúde. Neste caso,
não basta apresentar o SUS através de normatizações, treinamentos e protocolos;
estas ferramentas poderão condicioná-lo, mas impedem a transformação das convicções.e
práticas vigentes. Emerge uma “nova educação” nos paradigmas sócio-filosóficos sanitários.
Estes dilemas além de povoarem as práticas cotidianas, também impedem as conexões pedagógicas em serviço. As
iniciativas voltadas para aprendizagem e capacitação do trabalhador são
mitigadas em virtude do desinteresse pessoal e da alta rotatividade que envolve
o referido fenômeno.
Decerto que a transformação desta realidade requer
rupturas institucionais, no sentido de priorizar a desprecarização através de políticas
públicas, da mobilização coletiva dos trabalhadores e, sobretudo, das
Instituições de Ensino Superior (IES) na construção de uma cultura profissional
de reflexão cunhada em valores emancipatórios e novos agenciamentos em saúde. Mas,
como “o mundo não ficará melhor por conta própria”[3],
cabe aos profissionais que hoje sentem o peso da precarização em saúde mobilizarem
estratégias cognitivas de enfrentamento do problema.
As contribuições de Giles Deleuze e Felix Guattari para o ensino na saúde
Como filósofos da geração de
68, Deleuze e Guattari não se dedicaram objetivamente à Filosofia da Educação, eles não concordavam com a ideia de que a Filosofia deveria ser de... alguma coisa, “como um profeta que do alto
do deserto anuncia o porvir”. Suas contribuições, conforme Silvio Gallo bem
explicita, vêm de forma marginal, pela experiência de uma vida dedicada ao
ensino, pela fecundidade do pensamento militante. Militância capaz de fazer o
indivíduo mergulhar nas misérias do mundo, nas mais diversas misérias, para
então estabelecer processos de libertação. Em defesa da Filosofia criadora e
não reprodutora, vislumbra a oportunidade de intervir no mundo pela criação de
conceitos; tanto Deleuze quanto Guattari vêem nos conceitos imanentes da
Filosofia poderosos dispositivos de transformação da realidade.
O conceito sobre literatura menor não é
valorativo; nem significa o grau de importância linguístico, refere-se à
subversão ao modelo formal instituído.
Os escritos de Kafka emergem de uma sociedade em conflito sob o domínio
político da Alemanha; sua criação possui deformações denunciantes da dominação
territorial, da opressão institucional e da insignificância humana.
Deleuze e Guattari
interpretam na literatura de Kafka a desterritorialização, a fuga da dominação
territorial, o caráter político, e o valor coletivo. A estética não prevê beleza, mais um
testemunho avassalador da realidade. Por ser menor a literatura permite-se
resistir, agir nas brechas, nos desertos e nas misérias; expande-se na
transversalidade e difunde-se em gotas tenuíssimas.
Nesta busca por rupturas nos modelos, diretrizes e preceitos
institucionais, Silvio Gallo procura amalgamar os conceitos de literatura menor e rizomas desenvolvidos
por Deleuze e Guattari às questões educacionais. “Sem a intencionalidade de criar modelos, propor caminhos, impor
soluções, não se trata de buscar a integração dos saberes, mas fazer rizomas,
viabilizar conexões sempre novas, criativas e criadoras”.
A educação menor não se submete ao paradigma
arbóreo do conhecimento, o novo pensar requer a plasticidade rizomática. Rizoma significa uma metáfora em referente a “um tipo de caule
radiciforme de alguns vegetais formado por uma miríade de pequenas raízes
emaranhadas em meio a pequenos bulbos armazenatícios”, é um importante órgão de
reprodução dos vegetais. Na lógica deleuzeana, os rizomas não permitem rigidez
sistemática e organização disciplinar, não têm início, nem fim. São regidos por
seis princípios básicos: a) conexão - nos rizomas há um emaranhado de conexões
que estabelecem sempre novas conexões; b) heterogeneidade – as
conexões permitem o encontro de diferentes naturezas; c) multiplicidade – o
rizoma não se reduz â unidade, “não é sujeito nem objeto, mas múltiplo”; d)
ruptura a-significante o rizoma não se afirma na previsibilidade, sustenta-se
também pelas rotas de fuga; e) cartografia
– o mapeamento dos rizomas revelam algo a ser explorado, o devir; f)
decalcomania – os rizomas possibilitam uma
transposição dinâmica dos mapeamentos.
Aproximar os princípios da
educação menor e do crescimento de rizomas para as práticas em saúde, para o
ensino em serviço, significa transversalizar os saberes que circulam nos
espaços de forma não-disciplinar. Compreender que o processo educacional se
efetiva na realidade e não no campo da abstração, que os saberes fragmentados
não dão conta de apreender a complexidade singular que abarca cada ser humano
em suas relações sociais. O trabalho, a sexualidade, a espiritualidade, a
família, as emoções e experiências vivenciadas compreendem uma extensa rede de
significações que envolve o processo de criação do conhecimento.
Antes de buscar
resolutividade por um caminho cartesiano ou por ações operacionais mecânicas, a
educação na saúde precisa provocar inquietações no trabalhador, torná-lo
sujeito pensante de suas práticas para construção do aprendizado coletivo; buscar
agenciamentos para uma estrutura dinâmica do conhecimento.
Saúde, Saberes e Sabores /dez 2012
Tema: Comunicação em Saúde: "comunicar é tornar comum"
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios
sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2ª edição – São Paulo : Boitempo,
2009 ( mundo do Trabalho).
GALLO, Silvio. Deleuze e a educação. 2ª Edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
SCHNEIDER,
Daniela da Cruz. Uma sub-versão em educação:
possibilidades de uma pedagogia menor. P@rtes São paulo, 2012.
ZOURABICHVILI, Francois. O vocabulário de Deleuze. Série Conexões 4. Rio de Janeiro : Delume Dumará :
Sinergia : Ediouro, 2009.
1. Zourabichvili em sua análise sobre o vocabulário de Deleuze no verbete ‘Rizoma’
afirma que o conceito não configura um
método. Criado por Deleuze e Guattari rizoma significa um manifesto. O rizoma
não tem início, nem fim. Não deve ser confundido com a comunicação, é um
antimétodo que parece tudo autorizar. O seu rigor está justamente na
autorização plena de permitir caminhos para o pensamento sob três pilares: 1.
Pensar não é representar; 2. Não há começo real para o aprendizado ele se
instala no meio; 3. Todo encontro é possível não admite exclusão de nenhum caminho
para o conhecimento. Para o autor o rizoma é tão benevolente quanto seletivo:
ele tem a crueldade do real, e só cresce onde efeitos determinados têm
lugar.
2. O termo precarização
do trabalho refere-se a diversas mutações de caráter flexível nas relações
de trabalho como prestação de serviço, trabalho por tempo
determinado, terceirizações, cooperativas etc. Uma diversidade contratual
que implica em perda de direitos,
desvinculação da relação pedagógica do trabalho, discriminação, exclusão
social, subemprego e desemprego, como também a sujeição patronal e o
enfraquecimento sindical que impede mobilização e resistência coletivas dos
trabalhadores.
3. Esta
frase faz parte da citação do historiado Eric Hobsbawm: "Não nos
desarmemos, ainda que os tempos sejam insatisfatórios. A injustiça social ainda
precisa ser denunciada e combatida. O mundo não ficará melhor por conta
própria". Hobsbawm,
Eric. Tempos Interessantes, um breve século XX. Editora Companhia das Letras, 2007 - 472 páginas.
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