segunda-feira, 2 de setembro de 2013

PRECARIZAÇÃO E PRECARIEDADES: OS DOIS CAMINHOS TORTUOSOS DO SUS

Ao longo dos dois últimos anos, venho desenvolvendo uma pesquisa social na área de Ensino na Saúde sobre o tema “Formação profissional e crise do trabalho contradições e desafios para o SUS”. O procedimento para coleta de dados abrange entrevistas e observação participante com o objetivo de captar opiniões, percepções e representações dos sujeitos sobre o processo de trabalho no SUS. 

Nas primeiras abordagens com o grupo de estudo foi possível perceber o estranhamento dos sujeitos em relação ao termo precarização do trabalho. Este fato motivou a leitura preliminar do conceito elaborado pelo Comitê Interinstitucional de Desprecarização do Trabalho no SUS. Após a leitura, as opiniões sobre a ocorrência do trabalho precário no SUS foram norteadas por expressões como “estranho”, “ruim”, “inaceitável”, “absurdo”, “péssimo. Embora seja um fenômeno cada vez mais freqüente no serviço público, os depoimentos coletados relacionaram a precarização do trabalho com precariedades, sem qualquer distinção conceitual.  

 “Este conceito está vago ele não é suficiente”; “quando eu li o conceito eu fiquei decepcionada”; “tem que envolver não só o  vínculo empregatício, mas  as condições reais de trabalho, materiais  e humanas”; “como eu disse, lutar  por condições melhores de trabalho internas, talvez a gente pudesse se unir e tentar”; “eu achei que iria envolver a falta de um grampeador por exemplo  (...)”;  “essa precarização abrange muito mais do que isso;” “isso é uma fatia da precarização.”;  “para mim, precário era uma coisa totalmente diferente, uma coisa deficitária. (precarização) (...) “as condições são relacionadas à  falta de recursos materiais, financeiros,  humanos”;  “desta forma aí como direitos trabalhistas”? “nós trabalhamos em situação bem precária em tudo”; “a gente trabalha com seres humanos em situações até mais precárias”; “a  precariedade não é só do funcionário , é  do atendimento também”.

No dicionário da língua portuguesa precariedade origina-se do latim - precariu - significa aquilo que foi concedido por graça e pode ser revogável, ou seja, instável, pouco durável, insustentável. Precariedade é um substantivo qualidade do precário. Para os sujeitos a precariedade no SUS representa a escassez de recursos materiais, a inadequação dos espaços, falta de logística, o desperdício, o desvio orçamentário, o atraso tecnológico e outras situações que comprometem a qualidade na prestação de serviço.  Já precarização do trabalho é um conceito sociológico concernente ao fenômeno global de caráter destrutivo derivado da reestruturação produtiva do capital. Caracteriza-se pela expropriação do trabalhador de direitos historicamente conquistados, distorção da dimensão ontológica do trabalho e comprometimento da qualidade dos serviços prestados. Antunes (2001, p.42) considera a precarização um conjunto de mutações e metamorfoses nas relações formais de trabalho, prestação de serviço, cargos comissionados, trabalho por tempo determinado, terceirizações, contratos, cooperativas etc. Esta babel de vínculos implica em perda de direitos, desinteresse pedagógico, discriminação, exclusão social, subemprego, desemprego, sujeição patronal e enfraquecimento sindical.


 A conjunção dos conceitos feita pelos sujeitos da pesquisa despertou o interesse investigar a questão pelo prisma filosófico de Gilles Delleuze e Felix Guattari.  Para os autores não é o conceito que funda a realidade, ao contrário, o conceito brota da realidade, serve para torná-la compreensível. O conceito é dual por natureza, serve para conservar ou transformar a realidade. O conceito é exclusivamente filosófico, resignifica o mundo a partir das seguintes características: tem estilo próprio (assinatura); define-se por multiplicidade (como um caleidoscópio); cria-se a partir de problemas; tem uma história; é uma heterogênese (são respostas possíveis); abrange o absoluto e o relativo ao mesmo tempo; é um acontecimento não é a essência ou a coisa; não é discursivo nem proposicional, este atributo pertence à ciência. “O conceito é um dispositivo, uma ferramenta, algo que é inventado, criado, produzido, a partir das condições dadas e que opera no âmbito mesmo destas condições” (GALLO, 2008, p. 43). 

De volta à questão da pesquisa, o que temos no SUS? precarização ou precariedades? Qual a diferença entre os termos? A quem interessa a precarização do trabalho e a precariedade do serviço? O que podemos esperar das instituições públicas que se beneficiam com a  precarização

Por ser um conceito, a precarização do trabalh tem história, foi criado a partir de problemas, é um dispositivo que permite a compreensão da realidade com duas dimensões distintas, de conformidade ou de transformação. Apesar de emanar da realidade, o conceito não corrige, não traz propostas, não tem energia, nem força para intervir no problema.  O fenômeno permite um novo pensar, é um acontecimento dinâmico, produtor de novos conceitos. Trata-se de um dispositivo que incomoda e pode provocar reflexão e ação.

As opiniões dos trabalhadores enriqueceram toda a condução da pesquisa, através deles pude perceber que a realidade deflagra a construção de conceitos, e a interlocução com outros conceitos.  Considerar precarização “apenas as relações de trabalho” para aquele que disponibilizam sua força de trabalho no SUS é muito pobre. Estes sujeitos sociais reivindicam um conceito mais amalgamado com outros elementos – condições de trabalho, dignidade, valorização, tecnologias, recursos materiais, direitos, garantias, enfim, a satisfação do trabalhador. Se o conceito existe para pensarmos o novo, o devir, que sirva para pensarmos um SUS que não transite pelos caminhos da precarização e precariedades.


Referências:
ANTUNES, Ricardo. A dialética do trabalho: escritos de Marx e Engels (org).  São Paulo: Expressão Popular, 2004.
_________. ALVES, Giovanni. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educ. Soc., Campinas, vol. 25, n. 87, p. 335-351, maio/ago. 2004 335 Disponível em http://www.cedes.unicamp.br . Acesso em: 18 fev 2012
__________. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2ª edição – São Paulo : Boitempo, 2009 ( mundo do Trabalho).
_________. Trabalho e precarização numa ordem neoliberal. In:  FRIGOTTO, Gaudêncio Cidadania negada : políticas de exclusão na educação e no trabalho.  Rio de Janeiro: Cortez Editora, 2001; cap.II p. 35 – 48.
GALLO, Silvio. Deleuze e a Educação. 2ª Edição, Belo Horizonte : Autêntica, 2008.


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