quarta-feira, 27 de março de 2013

A PSICOPATOLOGIA DO TRABALHO


DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho : estudo da psicopatologia do trabalho. 
5ª Ed. ampliada – São Paulo: Cortez – Oboré 1992.


Construir uma resenha significa ajustar o foco dos refletores para outro autor brilhar. Não é uma tarefa difícil quando se trata de Christophe Dejours, um pesquisador fascinado pelo mundo do trabalho e a vida psíquica do trabalhador, sua obra  transborda este fascínio e fornece um arcabouço teórico relevante através de uma linguagem simples, direta e sem tecnicismo.

Dejours tem 64 anos, nasceu e vive em Paris. É doutor em Medicina especialista em Medicina do trabalho, psiquiatra, psicanalista, ergonomista e ex- professor da Faculdade de Medicina de Paris.  Sua área de interesse psicossomática e psicopatologia do trabalho.  Este livro “A loucura do Trabalho: estudo da psicopatologia do trabalho foi editado na França em 1980, traduzido para o português e 1992, encontra-se na 5ª edição ampliada e na 13ª reimpressão.

Em suas primeiras palavras o autor afirma:

Falar da saúde é sempre difícil. Evocar o sofrimento e a doença é, em contrapartida, mais fácil: todo mundo faz. como se, a exemplo de Dante, cada um tivesse em si experiência suficiente para falar do inferno e nunca do paraíso.

Este é o ponto de partida do estudo. Evocar os sofrimentos que envolvem o trabalho e, por consequência,  afetam a vida mental do trabalhador.  Trata-se do objeto de interesse da psicopatologia  do trabalho,  uma ciência  que se  propõe a estudar a posição dos sujeitos nas relações de trabalho intermediada pela palavra, pelo ato de pensar e pela ressonância metafórica do poder estruturador.  Durante muito tempo a psicopatologia do trabalho ocupou uma posição periférica em relação às disciplinas tradicionais como a psicossociologia, psicanálise, psicologia abstrata, dentre outras. O atraso deveu-se, talvez, pela necessidade de situar o pesquisador como um interlocutor e não um especialista, um amadurecimento epistemológico que só o tempo pode desenvolver.  

Ao traçar a historicidade do tema, o autor apresenta três correntes que envolvem o conceito de saúde para a classe operária a partir do século XIX.  Em decorrência do  desenvolvimento capitalista, não havia um conceito de saúde para a  classe operária em virtude da luta pela sobrevivência. Eram tantos riscos que envolviam o trabalho que “viver para o operário era não morrer” (p.14).  A miséria operária torna-se um flagelo comparado a uma doença contagiosa, e à medida que esta miséria torna-se exposição social para as classes privilegiadas medidas intervencionistas são defendidas como: o movimento higienista, a valorização das  ciências morais e políticas    e os estudos dos grandes alienistas. Medidas referentes à higiene pública, combate de endemias e epidemias, legislações referentes ao trabalho, medicalização de controle e a ascensão  da psiquiatria tornam-se  palavras de ordem.

Em contrapartida ao movimento operário nascente, o Estado assume o papel de árbitro regulador e coator. Embora dito de forma contrária, o século XIX não alcançou um significativo progresso para a classe operária, as conquistas foram cerceadas em função das intermináveis discussões governamentais e legislativas que romperam décadas para plena consolidação.  

O movimento operário, em defesa do direito de mobilização social da classe trabalhadora, após décadas de luta sofreu dois  contundentes golpes: as duas  guerras mundiais. Os eventos exigiram um salto qualitativo da produção industrial movido por uma nova lógica produtiva, o taylorismo. Toda a destruição ocasionada pelas guerras favoreceu a implantação de medidas protetivas para a classe operária envolvendo a medicina do trabalho. Tais medidas priorizavam a saúde do corpo, “como ponto de impacto da exploração”. Para o autor, se o corpo é a primeira vitima, há de se trazer ara análise os mecanismos de submissão, domesticação e adestramento deste corpo. Inserir as estratégias de dominação do aparelho mental capazes de anular as resistências e transformar o corpo dócil. Se antes a saúde significava não morrer, neste período ter saúde significa condições de trabalho.

O alvorecer de um mundo sem guerras trouxe desilusão e crise civilizatória para a sociedade envolvendo a contestação do modo de vida. O movimento de maio de 68 declarou  luta contra a sociedade de consumo e contra a alienação, tendo por testemunhas, a música, as drogas e a  liberdade de expressão.
Os três momentos apontam para o sofrimento no trabalho, primeiro, em prol da  sobrevivência, e posteriormente, pela luta por condições  de trabalho e pela resistência à organização do trabalho alienante. Nesta lógica, o estudo tem por objetivo “explicar o campo não-comportamental ocupado - do mesmo modo que um inimigo ocupa um país - pelos atos impostos, gestos, ritmos, cadências e comportamentos produtivos” (p.25).

No primeiro capítulo o autor aborda as estratégias defensivas do subproletariado nas zonas periurbanas. A escolha dos sujeitos provém do alto índice de morbidez que envolve esta população e a sua tendência de não falar em doença e sofrimento. Estas atitudes segundo o autor revelam a ideologia da vergonha. Por ela recobre-se de silêncio a sexualidade e as patologias. “o corpo só pode ser aceito no silêncio dos órgãos”. "Somente o corpo que trabalha, o corpo produtivo do homem, como o corpo trabalhador da mulher são aceitos; tanto mais aceitos quanto menos se tiver necessidade de falar deles” (p. 32-33).

A condição de doença incapacita o corpo de produzir trabalho, uma característica manifesta nesta classe social. Por fazer parte de um contingente de mão-de-obra subempregada, a doença exprime a vergonha de parar de trabalhar. A ideologia defensiva compõe assim, um mecanismo de controle coletivo pela vergonha, tem pó objetivo mascarar\conter e ocultar uma ansiedade particularmente grave. No caso de falência deste mecanismo afloram-se manifestações individuais  como alcoolismo, atos de violência antissociais e loucura.
Outra atividade analisada pelo autor é o trabalho na linha de produção (atividades repetitivas, escritórios, bancos etc.) e os mecanismos de defesa individual contra a organização de trabalho. A análise sobre o trabalho taylorizado revela que o “modo operatório cientificamente estabelecido” desconsidera o know how coletivo, a criatividade e as especificidades individuais (sexo, idade, estatura estrutura mental etc.).  Este modelo propõe divisões ( operacionais, organizacionais e intelectuais) ignora o sentido do trabalho em prol da produtividade.

Neste sentido, a solidão, o isolamento e do trabalhador desencadeiam mecanismos simbólicos de defesa coletiva, e solidariedade frente às pausas forçadas na linha de produção.  Denominado por Taylor de vadiagem, este sistema de defesa coletiva são operações de regulagem psíquica e fazem parte da etapa de trabalho. Por mais que sejam limitadas estas operações se opõem ao sofrimento na linha de produção.

No capítulo 2 o autor destaca o sofrimento do trabalho através do conteúdo significativo da tarefa e no conteúdo ergonômico do trabalho.  O conteúdo significativo no trabalho envolve duas dimensões, a formação de imagem de si (sujeito) e símbolos, mensagens  e materiais  destinados  ao outro (Objeto). Todas estas significações concretas ou abstratas são indissociáveis e envolvem a dialética do Objeto, os conteúdos não se deixam separar. Qualquer tentativa de separação destes termos será arbitrária, “o investimento narcísico só pode renovar-se graças ao investimento objetal e vice-versa” (p. 50).

Quando a tarefa perde a significação há o sofrimento operário. Este  sofrimento envolve dois sintomas: a insatisfação e a ansiedade e  envolve também muitas variantes no discurso operário como: indignidade, inutilidade, vergonha, desqualificação, cansaço, falta de imaginação e de inteligência etc. A frustração e a tarefa desinteressante formam uma imagem narcísica “pálida, feia, miserável”.
   
No sentido ergonômico do trabalho, o trabalhador paga um alto custo relacionado aos sofrimentos físicos, somáticos e mentais  inseridos no posto de trabalho. Isto porque os projetos e instalações não levam em conta os princípios da ergonomia de concepção; cabendo à ergonomia de correção promover melhorias objetivas das condições de trabalho. Nestes termos, a intervenção ergonômica pode ser paliativa, aliada à organização do trabalho visando produzir sensação subjetiva de alívio para o aumento da produtividade. A intervenção ergonômica pode mascarar a real  vivência subjetiva do trabalhador e aliviar temporariamente o desconforto, por exemplo, postural do trabalhador; até que este seja substituído por outro, fenômeno denominado pelo autor de “uma espécie de edifício estratificado de prejuízos hierarquizados”. 

No capítulo 3 “O trabalho e o medo”, o autor aborda a presença do medo em todos os tipos de ocupações profissionais. Na análise ressalta a diferença semiológica entre  medo e  angústia. A angústia resulta de um conflito intrapsíquico(...) , pode  trata-se de oposição entre duas pulsões  entre dois desejos, entre dois sistemas etc. Por compreender a estrutura de personalidade requer uma investigação psicanalítica individual, já o medo corresponde ao aspecto concreto da realidade e exige sistemas defensivos específicos. O medo está intimamente ligado aos riscos relacionados à integridade física do trabalhador, asfixia, queimadura, fratura, ferimentos, morte etc.  Por isso, possui  caráter exterior, inerente ao trabalho, independente da vontade do trabalhador e na maioria das vezes coletivo. 

O trabalho que produz risco real para o trabalhador possui sinais diretos de medo norteiam o discurso do trabalhador,  um clima de ansiedade e de sofrimento mental, ”onde tudo lembra a possibilidade de ocorrência de um acidente ou incidente”.  “A fábrica é um Barril de pólvora”, “um vulcão em erupção”, “um animal furioso”, são  representações sociais do medo nos discursos dos trabalhadores.   Ao lado do risco real temos o risco suposto que desencadeia sistemas defensivos como problemas de sono, consumo de psicotrópicos e psicoestimulantes.
  
Assim como os discursos revelam a dimensão real do medo, há sinais indiretos do medo nas atitudes de negação. A resistência aos equipamentos de segurança individual, o  desprezo pelas normas de segurança, a inconsciência em relação ao risco enfrentado, o aumento do risco por atos de disputa e bravura, a gozação, o enquadramento dos jovens recém-chegados, o silêncio sobre o perigo extrínseco, configuram um mecanismo defensivo na tentativa de neutralizar o medo, de construir a coesão do grupo e de  garantir a produtividade.

O capítulo 4 apresenta o trabalho na aviação de caça como um contra-exemplo do sofrimento no trabalho. Sob as mais inóspitas condições, com um conteúdo de significação na tarefa e no trabalho de alto risco, a  atividade do piloto de caça se caracteriza por um contra-exemplo por desencadear nestes profissionais mecanismos de adaptação dos pilotos às condições de trabalho e aos valores morais da esquadra. Trata-se de   uma seleção com excelente nível de eficácia que abrange profissionais com aptidões em qualidade e quantidade, capazes de desenvolver uma estrutura mental norteada por satisfação e desafios frente ao perigo. Uma situação  que para o autor merece maior investigação.

Quanto à exploração do sentimento, o capítulo 5 apresenta uma análise complexa sobre o tema. Contrárias às doenças físicas que impedem a produtividade do trabalhador, as estruturas mentais em sofrimento podem favorecer a exploração e a subsunção do trabalhador. A frustração de uma telefonista, por exemplo, produz agressividade reativa, diante da agressividade  e da  realidade, a telefonista converte esta energia em adaptação à tarefa,  “(...) a telefonista transforma-se na artesão do seu próprio condicionamento” (p.102). A organização do trabalho obtém benefícios no sofrimento do trabalhador.

Outro exemplo refere-se à indústria química, na qual o processo industrial requer não só o pragmatismo, mas também domínio técnico e teórico sobre o processo de trabalho. Enquanto os operários recebem instruções restritas e insatisfatórias, baseadas em dicas e macetes, as chefias técnicas dominam a teoria desconectada da prática laboral. Assim podemos observar que a ignorância provoca ansiedade e a ansiedade impulsiona o trabalhador a enfrentar o medo e a ignorância. Diante das exigências este trabalhador inventa modos operativos, apropria-se dos macetes e truques, torna-se polivalente e faz a fábrica funcionar. Este mecanismo não confere ao trabalhador domínio técnico, teórico, um know how que possa protegê-lo dos riscos reais da atividade, ao contrário , pode expô-lo aos acidentes e à angústia psíquica.

No capítulo 6 “A organização do trabalho e a doença”, o autor levanta a hipótese de que a exploração mental possa servir como fonte de mais-valia nas tarefas desqualificadas. Nesta lógica, as neuroses, psicoses e depressões se manifestam como alterações do trabalho, através de  sistemas defensivos tornam-se  compensadas, mas se refletem no desempenho produtivo do trabalhador. Ao serem detectadas são eliminadas pela punição e exclusão do trabalho, assegurando a “assepsia mental” do trabalho. “O sofrimento mental e afadiga são proibidos de se manifestarem numa fábrica. Só a doença é admissível (p.121). daí a exigência do atestado medico e da medicalização do sofrimento, desqualificando a dimensão psíquica do conflito.

Em geral, a organização do trabalho não pode ser considerada uma fonte de doença mental, ela não cria doenças mentais. Segundo o autor o trabalho  pode criar situações favoráveis para as  descompensações  psicóticas  através da fadiga, do sistema de  frustração- agressividade reativa e a própria organização do trabalho como uma correia de transmissão de uma vontade externa. Na ocorrência do transtorno psíquico há uma contradição entre o tratamento proposto e a organização do trabalho. No caso da psicoterapia entra em confronto com os sistemas fóbicos defensivos que mantém a produtividade e a terapia psicofarmacológica produz efeitos colaterais que  interferem  na vigilância do trabalhador e no aumento de riscos para acidente de trabalho. Logo, o tratamento prescinde o afastamento do trabalhador convergindo para a cronicidade do problema numa celeuma com a Previdência Social.
Além da descompensação da doença mental há, na organização do trabalho, a ocorrência de doença somática. Na definição de  somatização  temos:
Um processo pelo qual um conflito que não consegue encontrar uma resolução mental desencadeia, no corpo desordens endócrino-metabólicas, ponto de partida da doença somática; pode atingir um sujeito com estrutura neurótica ou psicótica verdadeira. A somatização é encontrada, então, em sujeitos com estrutura psiconeurótica, quando o seu funcionamento mental é, momentaneamente, colocado fora de circuito”.  (p.127).
A organização do trabalho nos moldes rígidos para a produtividade pode afetar o equilíbrio psicossomático afetando a longevidade dos  indivíduos susceptíveis. Estas manifestações se aplicam em maior número às classes sociais desfavorecidas em decorrência de fatores como péssimas condições de trabalho, ineficácia de defesas mentais e uma organização do trabalho potencializadora de conflitos. Primeiro o trabalhador é acometido de insatisfação, em seguida de fadiga, uma fadiga misteriosa sem uma fisiopatologia concreta (simultaneamente psíquica e somática).

Dejours em suas considerações finais afirma que a organização do trabalho ignora os sonhos, projetos e esperanças do trabalhador, bloqueia a relação home-trabalho e cria insatisfações pelo modelo taylorizado. No entanto, o autor ressalta e reconhece a dialética que envolve o trabalho, principalmente quando a sua organização favorece o equilíbrio mental e a saúde do corpo, como foi visto no capítulo 4.

A subjetividade que envolve o trabalho na fábrica, no escritório, nos bancos aponta para o sofrimento, diante dele há por parte do trabalhador o emprego de sistemas defensivos e estas defesas escondem alguma coisa, talvez a resistência do corpo em tornar-se dócil. Assim a organização do trabalho traz ao debate alienação na perspectiva marxista e no sentido psiquiátrico, de substituição da vontade própria do Sujeito pela do Objeto. Uma transposição permeada pelo  sofrimento,  fadiga e dor;  “uma dor que permanece desconhecida não apenas dos observadores, mas também dos próprios trabalhadores”.

domingo, 24 de março de 2013

SOCIEDADE E CULTURA NA PRÁTICA PROFISSIONAL EM SAÚDE

CHINATOWN EM NITERÓI  


Esta semana conheci Isabela, uma jovem imigrante chinesa que procurou o serviço de saúde por motivo  de gravidez, aproximadamente com 10 semanas de gestação. Recém-chegada da China, Isabela trabalha em uma pastelaria no Centro de Niterói, como outros chineses em  situação análoga, a jovem não tem moradia, vive no estabelecimento que trabalha em condição precária, sua escolaridade é deficitária  e não fala português.  Recebeu o codinome 'Isabela' dos colegas da pastelaria logo assim que chegou ao Brasil. Para a consulta trouxe o passaporte e uma colega de trabalho que não falava mandarim. 


 O episódio foi hilário. A inexistência de comunicação era entremeada pelo aumento da voz da “intérprete”, por gestos exagerados, mímicas e desenhos sem êxito.  Enquanto isso, a jovem ria sem entender a complexidade da situação que nos encontrávamos. Diante disso, todo o histórico de Isabela resumiu-se a lacunas, na coleta de dados, na anamnese, nas queixas e também nas orientações que ela esperava receber. Embora o episódio tenha ocorrido num centro urbano, a barreira linguística impediu a comunicação, e conseqüentemente, todo o processo assistencial e educativo foi prejudicado. Apesar da jovem chinesa não estar em situação de enfermidade, a barreira cultural tornou o atendimento precário e vulnerável a uma situação de risco posterior. Uma derrota para a educação em saúde.

A partir deste relato de experiência faço as seguintes considerações: 
A práxis em saúde permite olhares, percepções e impressões sobre o cotidiano. O dia-a-dia laboral, longe de ser estático e constante é rico, dinâmico e cheio de subjetividades, sua análise exige uma concepção de saúde mais ampla e inclusiva, valorizando o pertencimento e a bagagem cognitiva, psicológica, social e cultural de cada usuário e do coletivo.

Morin (2011) afirma que o que há de mais biológico no ser humano é também o que há de mais impregnado de cultura, logo uma assistência em saúde que priorize a humanização e o acolhimento deve respeitar esta dimensão cultural que atravessa o biológico. O exemplo de Isabela revela a necessidade da comunicação em saúde como a primeira estratégia de ação, não só em áreas demarcadas pela presença de culturas indígenas como nos grandes centros urbanos onde há população imigrante; 

O SUS como um campo de disputa de poder, perpetua os pressupostos  cartesianos que legitimam como profissionais de saúde aqueles com formação na área biomédica. Esta tem sido uma visão institucional pobre e tímida que esvazia a assistência da dimensão cultural e social. O encontro com a futura mãe de um cidadão brasileiro seria muito mais proveitoso se houvesse a participação de outros profissionais como educadores, tradutores, sociólogos, antropólogos, assistentes sociais etc. 

A construção de novos valores e hábitos não ocorre de imediato; é processual. A educação em saúde, nestas condições, requer compreensão do sentido e pertencimento social, susceptível de segregação, isolamento, resistências e negações entre os sujeitos envolvidos. É importante considerar a questão cultural e social como fatores determinantes de saúde; a jovem, por exemplo, apresentava baixo peso por conta da dificuldade de adaptação aos hábitos alimentares do Brasil;

O encontro entre o “eu” e o “outro” deve ser esvaziado de pressupostos unilaterais. No caso da jovem gestante, o fato dela ter somente dezoito anos me fez “supor” que a situação vacinal estava regular; mas esta situação pertence à visão ocidental de saúde, pautada na  prevenção com imunobiológicos. Mas, na China é assim? Diante da dimensão do país, a região onde ela morava tinha acesso à unidade de saúde pública? O calendário vacinal é similar ao nosso? O desconhecimento sobre a cultura sanitária chinesa me conduziu a pressupostos equivocados.

Esta experiência me fez concordar com Dejours, pensar em saúde é sempre mais difícil do que pensar em doença.  Na situação de doença há ações imediatas e prioritárias, no entanto, a atenção ao sujeito saudável requer atitudes e estratégias de promoção à saúde como: considerar em cada usuário a diversidade, singularidade e a subjetividade, o habittus segundo Bourdieu; investir em educação não só para a saúde, mas para a vida no sentido de estimular a construção da cidadania e da ética na sociedade; priorizar a autonomia e emancipação do usuário; respeitar a vontade, verdades e limites do “outro” e não infringi-lo com o meu “eu”, vontades e verdades. 

Podemos concluir que a construção de um novo paradigma de saúde realmente eficiente e humanitário  depende de desconstrução e reconstrução de concepções sobre sujeitos, serviços e saúde.  Entender que o SUS é universal e tem por princípio filosófico a equidade e isto significa iguais condições de acesso e qualidade na assistência para os nacionais e estrangeiros dentro deste imenso território. Desta forma, podemos afirmar que por deficiência do sistema Isabela, uma “brachinesa”, não recebeu o atendimento pré-natal que merecia.   


Referências:

ARAÚJO Inesita Soares de e Janine Miranda Cardoso. Comunicação e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.
BRASIL. Lei Nº 8080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. In: Conselho Regional de Serviço Social – CRESS 11ª Região. Coletânea de Legislações: direitos de cidadania. Curitiba, nov. 2003.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma reformar o pensamento. 19ª edição – Rio de |janeiro: Bertrand Brasil, 2011
PAIM, Jairnilson Silva. O que é SUS? Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009

sábado, 23 de março de 2013

A ONDA


Resenha crítica do filme “A Onda”


            Schopenhauer adverte que a autêntica concisão da expressão consiste em dizer apenas, em todos os casos, o que é digno de ser dito, com a justa distinção entre o que é necessário e o que é supérfluo. Utilizo a expressão do filósofo para direcionar a minha análise sobre o filme “A Onda”. Procuro não incorrer na condenação do professor Rainer Wegner, mas compreender e salientar que ensinar, assim como toda prática social, tem caráter criativo, contraditório, pluridimensional, múltiplo e singular, a um só tempo; daí a complexidade e riscos do ofício.
            Após ser designado para a missão de ensinar durante uma semana autocracia para uma turma do  Ensino Médio, o professor Wegner resiste ao tema e inicia seus trabalhos sem um planejamento sistematizado. Ao que parece, desconsiderou a pesquisa, a análise, a crítica, a historicidade do tema em questão, optou pelo improviso, baseado em sua experiência, carisma e intuição. No primeiro dia, opta por aula expositiva, mas, diante dos protestos da turma quanto à falta de originalidade do assunto, direciona a proposta para o método indutivo, certo que todo conhecimento provém da experimentação. Propõe assim a turma vivenciar o autoritarismo fascista, através da disciplina rígida, do cerceamento da liberdade de expressão e uma construção artificial de unidade e força.
            Nesta trajetória, o professor renegou a subjetividade dos alunos (e a sua própria), a experiência, que deveria provocar indignação ao autoritarismo em defesa do Estado democrático, foi assimilada, pela grande maioria, na essência da tirania e opressão. Assim, o ambiente escolar, impregnado de ostentação social, rixa e discriminação favoreceu a dominação do imaginário desses jovens sequiosos de pertencimento, auto-estima e referências.
Na transposição didática, faltou discernimento para estabelecer o limite entre o ambiente educativo construído para compreensão do conteúdo e a evasão desses conceitos “para fora do laboratório”, assim como explorar sociologicamente as categorias relacionadas com autocracia como: liberdade, poder, censura, democracia, autoridade etc. Faltou também, o diálogo entre a teoria e a prática. No enfoque fenomenológico do interacionismo simbólico, podemos afirmar que nesta complexa cena social, os sujeitos, embora não escapando das determinações estruturais, possuem uma margem de autonomia para desempenhar seus papéis e, assim, construir de formas diversificadas suas práticas (Sirota).  Realidades diárias sendo definidas e redefinidas.
            O conteúdo ensinado produziu uma distorção ideológica, a “onda” passa de uma simples atividade extracurricular para um movimento organizado que ganha corpo, visibilidade e adeptos através de manifestações de desordem, depredações, preconceito, discriminação, intolerância e violência. Identifico neste processo, um abismo entre a prática da sala de aula e outras instâncias, supervisão pedagógica, coordenação de curso, direção, família e Estado. É óbvio que o professor precisa ter autonomia em sua prática, é o que pleiteamos em todas as falas, mas, a interação com outros campos do saber e estruturas de poder e decisão torna-se imprescindível para o sucesso do projeto.
Cabe ressaltar, a incoerência do discurso progressista e revolucionário do professor, resistente até aos padrões conservadores da escola, e a sua prática. Para Paulo Freire, o ato de conhecimento é também um ato político e não há neutralidade nesta prática. “Não é o discurso que ajuíza a prática, mas ao contrário, é a prática quem ajuíza o discurso”. No caso do professor Rainer, a conversão de anarquista simpatizante em ditador fascista faz-nos questionar a sua convicção ideológica. Parece que seu estilo de vida, naturalista, roqueiro, autêntico e irreverente  faz parte de um modismo, esvaziado de sentido. A sua práxis sucumbe ao poder. O posto de líder do movimento lhe confere um lugar de destaque diante dos alunos, dos pares e da direção da escola que exerce uma sedução perigosa sobre sua conduta. Ao ser confrontado pela esposa a despeito do direcionamento do projeto argumenta sobre o sucesso de suas aulas e a incapacidade dela conquistar a confiança e admiração dos alunos.
Diante do movimento crescente da onda, há uma voz dissonante, a aluna que veste “vermelho”. É gratificante poder constatar que em meio à massa alienada e manipulada, politicamente analfabeta, segundo a concepção freireana, há uma dissidência consciente, politicamente crítica e engajada; resistente a ação do professor e dos colegas, que busca o enfrentamento pela via ética e pacífica.
Lamentavelmente, o final não foi feliz; a onda ficou fora de controle. A última cena nos permite alguns questionamentos: as aberrações ideológicas e sociais “nascem” numa sala de aula? Como reconhecer a linha tênue entre ensinar e doutrinar? E o que fazer com alunos socialmente vulneráveis? Seria a metodologia equivocada responsável por homicídios, suicídios, bulling, homofobia etc. no ambiente escolar? Estaria o professor munido de teoria para interagir com a prática, e faria diferença o fato dele dispor dessa habilidade?
Não possuo respostas para estes questionamentos, mas percebo neste filme, como nos demais, a ausência de alguns sujeitos escolares, que mais uma vez permanecem ocultos, são eles: os pais e responsáveis dos alunos que perderam a oportunidade de perceber e intervir no processo de construção da onda, a direção da escola que mesmo diante de episódios de discriminação e violência, como ocorrido no campeonato de natação, manteve-se omissa, a professora/esposa que após detectar o fascínio que o marido exercia sobre os alunos sequer buscou alguma orientação pedagógica e o poder público que tratou os atos de vandalismo dos alunos como eventos casuais. Assim como iniciei a minha análise, concluo ressaltando que condenar as ações equivocadas do professor Wegner seria uma tarefa fácil; difícil, é utilizar o filme para uma autocrítica, no caráter pedagógico, principalmente quando contatamos que não somos auto-suficientes, que a sala de aula é um “caleidoscópio” – um ambiente vivo, complexo e dinâmico que produz múltiplas configurações, que o saber construído é algo além do saber ensinado e que o nosso cotidiano, a nossa prática, está repleta de contradições.     

PARA QUE SERVE A HISTÓRIA?


Para que serve a História?

Começamos pela resposta clássica de Marc Bloch: “a História é a ciência dos homens no transcurso do tempo”. O que isto quer dizer?
 Inicialmente, a História ocupava-se do passado, seu objeto estava temporalmente distante e desconectado do presente, a narrativa restringia-se aos heróis, mártires e grandes feitos, em busca da verdade absoluta baseado na rigidez do método e na neutralidade do pesquisador.
A perspectiva era evolutiva, o presente “moderno” era melhor que o passado “atrasado” e baseado nas grandes invenções e na tecnologia havia um ufanismo com relação ao futuro. Mas todo esse conceito ruiu diante do terror e da barbárie da I e II Guerras Mundiais. Sobraram incertezas e indagações sobre o porvir.
O século XX foi, nesse sentido, um divisor de águas no pensamento histórico.  O fazer histórico torna-se mais reflexivo, a análise mais crítica, o olhar multidimensional, voltado para a compreensão e não julgamento do fato, mais conceitual e menos factual.
 A metodologia torna-se de forma variada um campo de disputa e celeumas entre os historiadores.  Na busca do saber histórico não há certezas. As fontes também são inquiridas e relativizadas. Há de se perguntar sobre a existência em si do documento: o que vem a ser o documento? O que é capaz de nos dizer? Como podemos recuperar o sentido deste seu dizer? Por que tal documento existe? Quem o fez, em que circunstâncias e para que finalidade foi feita? Como e por quem foi produzido? Para que e para quem se fez esta produção? Qual é a relação do documento no universo da produção? Qual a finalidade e o caráter necessário que comanda a sua existência? Sobre o significado do documento como sujeito: por quem fala tal documento? De que história particular participou? Que ação e que pensamentos estão contidos em seu significado? O que faz perdurar como depósito da memória? Em que consiste seu ato de poder?
Não podemos esquecer que ao longo da história, muitas vezes, determinados grupos sociais se apropriam dos destinos de uma coletividade, ou seja, escrevem a história sob o prisma da dominação e dos mecanismos de funcionamento social que envolvem desigualdades e contradições. Estar no poder implica para o “grupo vencedor” ter acesso à maior parte dos recursos humanos com que conta a sociedade       (intelectuais, burocracia, sistemas de educação, de coerção, religião etc.) e a possibilidade de influenciar – incentivando, desestimulando e até proibindo – o que as pessoas falam e escrevem. Isso não quer dizer que outros grupos “os vencidos”, não possam contar a história a seu modo, do seu ponto de vista, a “subversão do fato”. Essas vozes, ou melhor, essas fontes de informações, estão nos discursos, falas, e escritos, mas também em monumentos, músicas, obras literárias, pinturas, obras de arte e até no silêncio.
Nessa lógica o que faz o historiador diante do Tempo Presente? Alguns não se arriscam na pesquisa, uma vez que não há base teórica do fato recente, a metodologia se vulnerabiliza diante da proximidade pesquisador/objeto, ambos compartilham a trajetória temporal.
As fontes, em tempos de avançada tecnologia da informação, perdem a prerrogativa e a legitimidade no lugar de memória. Há uma fluidez na velocidade dos fatos, das rupturas e permanências. Como buscar a especialização sobre um determinado assunto? Como esgotar a análise das fontes? Como produzir teoria diante de novos acontecimentos? Esses entendem que Tempo Presente é assunto para cientista político, sociólogo, jornalistas, comentaristas, economistas, diplomatas...
Para outros “destemidos” historiadores, o Tempo Presente requer sim, uma análise histórica. Claro que é um caminho escorregadio, não há o chão firme do passado, as fontes não estão em arquivos, bibliotecas, no subsolo, achados arqueológicos, ou nos porões; “elas estão no meio de nós”, nos jornais, revistas, na propaganda, no bar, nas prisões, nas comunidades, aqui no Tempo Presente.  Este Tempo, que rompe a velocidade da luz, exige do historiador a não especialização, olhar a história totalizante com olhar investigativo, mas consciente das incertezas.
 A análise histórica do Tempo Presente permite possibilidades, interage com outras análises, dialoga com as demais ciências humanas, torna possível a investigação e a interpretação do objeto sem paradigmas, só argumentações.
 Voltando a pergunta inicial, para que serve a História? Ela ajuda o indivíduo a compreender o passado e se situar no presente como interventor da sua história. Desperta uma visão crítica da sua realidade, afasta o senso comum e as manipulações. A partir dela, da história, torna-se possível ver e ler o mundo com novas lentes pelas quais a sociedade, o governo, as relações de poder, a legislação vigente, como resultado de forças sociais.  Forças estas que atravessam a miséria e as injustiças sociais como conseqüências de apropriações e privilégios de grupos dominantes.
Ensinar História é o ofício do professor–pesquisador, na concepção de Paulo Freire, e de  Marc Boch, o desafio é de trazer a história do mundo acadêmico, da erudição, para o cidadão comum. Decodificar a Babel de conceitos com a obrigação de difundir e esclarecer o processo histórico, sem fazer do ensino de História  narrativa literária ou ficção. Significa desenvolver no dia-a-dia a capacidade de “saber falar” às crianças e aos doutos.


sexta-feira, 22 de março de 2013

HABEMUS DENGUE!


Esta semana muitos amigos postaram no facebook uma charge interessante. A imagem  relacionava  o  fumacê de combate à dengue à fumaça branca liberada recentemente pela chaminé da Basílica de São Pedro. O anúncio da eleição de um novo Pontífice declamado por  Habemus Papam sendo resignificado por Habemus Dengue!

A semelhança para por aí. A fumaça romana apresenta novidades, um novo Papa, latino-americano, adepto da fraternidade e do combate à pobreza e avesso aos símbolos de ostentação. Já a fumaça tóxica pulverizada em solo brasileiro, anuncia uma continuidade perpetuada há mais de 25 anos que hostiliza a população com dor, sofrimento, medo, desgaste, desânimo, desconforto e óbitos. Uma longa lista de vidas ceifadas que mal sabemos quantificar. As notificações revelam mutações do vírus tipo 1,2,3,4 sem que nestes mais de vinte anos essa evolução frenética fosse interrompida  por uma intervenção estatal comprometida e eficiente.

Vivemos a cada ano o crescimento da epidemia com agravamento dos sintomas em face das comorbidades e da recontaminação. Iniciativas no âmbito da vigilância epidemiológica e sanitária caminham na contramão do processo de erradicação do problema. Faltam investimentos em pesquisa, em campanhas educativas que mobilizem a população, em medidas preventivas voltadas para coleta de lixo, controle dos vetores e divulgação de larvicidas e repelentes naturais, já que há a possibilidade de resistência do mosquito aos larvicidas e inseticidas já existentes.

Lamentavelmente o poder público utiliza seus recursos numa lógica curativa, priorizando uma força tarefa em função de hospitais de campanha, contratações de emergência, centros de hidratação, vagas em unidades intensivas, parcerias com laboratórios particulares etc. Medidas paliativas para suprir os meses de apatia e indiferença ao mosquito  e envolvimento com estádios, praças, shows, campanhas publicitárias e tantas outras superficialidades como se a epidemia fosse erradicada por uma simples ação da natureza.

Sim, Papa Francisco, habemus dengue! Carecemos da intervenção divina, porque habemus dengue, habemus inundações, habemus desmoronamentos e habemus políticos incompetentes. 






quarta-feira, 20 de março de 2013

SAÚDE, SABERES E SABORES


Este projeto nasce de interlocuções teórico-práticas motivadas pelo cotidiano na Unidade Básica de Saúde, pelas reflexões compartilhadas no Mestrado Ensino na Saúde  e pela  necessidade de aplicar os saberes, até aqui gerados, em ações transformadoras  em saúde.
 Na condição de uma proposta de intervenção em serviço, cuja  temática envolve a formação pedagógica e a precarização do trabalho,   busca-se primeiramente incorporar o método científico à realidade vivenciada in loco. Romper com o distanciamento do objeto, com a demarcação metodológica em definir e delimitar lugares sociais, áreas do conhecimento e linhas de pesquisa, entendendo que nas práticas cotidianas os saberes fluem pelos espaços em trânsito livre, sem fronteiras que impeçam conexões cognitivas. O processo de ensinar/aprender se efetiva nas ações, no entremeio, sem início e sem fim. 
Posteriormente busca-se enfrentar o desafio de humanizar dialeticamente as relações em saúde, hoje cada vez mais desumanizadas pela precarização do trabalho, através de um espaço lúdico de aprendizagem destinado ao desenvolvimento de autonomia e de novas possibilidades de pensar e recriar as práticas em saúde.
A ideia estrutura-se na estética rizomática [1] do conhecimento, em fazer emergir possibilidades de aprendizagem pelas brechas do processo de trabalho instituído. Nesta lógica, os saberes se pulverizam pela transversalidade, pela margem, no momento da informalidade, da descontração, da conversa, do cafezinho. Uma rota de fuga à rotina estressante do trabalho e ao modelo educativo convencional de sala de aula, lápis e papel, palestras, apostilas etc. Neste pit stop não há espaço para tutores, são todos aprendizes, mais ou menos experientes, que compartilham os sabores e dissabores das práticas em saúde.  O importante é provocar a pedagogia do risco para o exercício do pensamento, das inquietações, das reflexões, da autocrítica e da coragem de construir as próprias conexões.
  Mas, qual a relevância deste projeto? 
Embora obscuro em nosso meio, a precarização do trabalho [2] é um fenômeno mundial procedente do pensamento neoliberal e privatista, caracterizado pela exploração da mais–valia, supressão de direitos e garantias trabalhistas(2).  No Sistema Único de Saúde, um significativo contingente de profissionais vive hoje mutações reconhecidamente precarizadas nas relações de trabalho; contratação por autonomia (RPA), cargo em comissão, terceirização, cooperativas, organizações sociais de saúde (OSS) etc. Em sua trajetória organizacional, o SUS incorporou estas mutações como uma relação risco-benefício em torno da sustentabilidade do sistema, fato impeditivo ao enfrentamento da precarização do trabalho de modo mais contundente.
Embora restrita a uma determinada parcela de trabalhadores, a precarização não se delimita, ela se propaga difusamente e retroalimenta o sistema e as ações em saúde. Estes efeitos tomam enormes proporções em função da demanda de pessoal, da inexistência de qualquer critério seletivo no ato da contratação, da falta de qualidade nos cursos técnicos e superiores, das remunerações aviltantes que são oferecidas aos profissionais, da carga horária excedente às normas trabalhistas, da disparidade funcional e salarial entre os membros da equipe etc.
Em cada “novo” profissional que “adentra” ao serviço é possível constatar  a predominância do modelo tecnicista, hierarquizado, curativo e as lacunas curriculares sobre a legislação do SUS e o apel das ações sistematizadas para  atenção primária à saúde. Neste caso, não basta apresentar o SUS através de normatizações, treinamentos e protocolos; estas ferramentas poderão condicioná-lo, mas impedem a transformação das convicções.e práticas vigentes. Emerge uma “nova educação” nos paradigmas sócio-filosóficos sanitários.
Estes dilemas além de povoarem as práticas cotidianas, também impedem as conexões pedagógicas em serviço. As iniciativas voltadas para aprendizagem e capacitação do trabalhador são mitigadas em virtude do desinteresse pessoal e da alta rotatividade que envolve o referido fenômeno.
Decerto que a transformação desta realidade requer rupturas institucionais, no sentido de priorizar a desprecarização através de políticas públicas, da mobilização coletiva dos trabalhadores e, sobretudo, das Instituições de Ensino Superior (IES) na construção de uma cultura profissional de reflexão cunhada em valores emancipatórios e novos agenciamentos em saúde. Mas, como “o mundo não ficará melhor por conta própria”[3], cabe aos profissionais que hoje sentem o peso da precarização em saúde mobilizarem estratégias cognitivas de enfrentamento do problema.
As contribuições de Giles Deleuze e Felix Guattari para o ensino na saúde
Como filósofos da geração de 68, Deleuze e Guattari não se dedicaram objetivamente  à Filosofia da Educação, eles não concordavam com a ideia de que a Filosofia deveria ser de... alguma coisa,  “como um profeta que do alto do deserto anuncia o porvir”. Suas contribuições, conforme Silvio Gallo bem explicita, vêm de forma marginal, pela experiência de uma vida dedicada ao ensino, pela fecundidade do pensamento militante. Militância capaz de fazer o indivíduo mergulhar nas misérias do mundo, nas mais diversas misérias, para então estabelecer processos de libertação. Em defesa da Filosofia criadora e não reprodutora, vislumbra a oportunidade de intervir no mundo pela criação de conceitos; tanto Deleuze quanto Guattari vêem nos conceitos imanentes da Filosofia poderosos dispositivos de transformação da realidade.  
 O conceito sobre literatura menor não é valorativo; nem significa o grau de importância linguístico, refere-se à subversão ao modelo formal instituído.  Os escritos de Kafka emergem de uma sociedade em conflito sob o domínio político da Alemanha; sua criação possui deformações denunciantes da dominação territorial, da opressão institucional e da insignificância humana.
Deleuze e Guattari interpretam na literatura de Kafka a desterritorialização, a fuga da dominação territorial, o caráter político, e o valor coletivo.  A estética não prevê beleza, mais um testemunho avassalador da realidade. Por ser menor a literatura permite-se resistir, agir nas brechas, nos desertos e nas misérias; expande-se na transversalidade e difunde-se em gotas tenuíssimas.  
Nesta busca por rupturas nos modelos, diretrizes e preceitos institucionais, Silvio Gallo procura amalgamar os conceitos de literatura menor e rizomas desenvolvidos por Deleuze e Guattari às questões educacionais. “Sem a intencionalidade de criar modelos, propor caminhos, impor soluções, não se trata de buscar a integração dos saberes, mas fazer rizomas, viabilizar conexões sempre novas, criativas e criadoras”. 
 A educação menor não se submete ao paradigma arbóreo do conhecimento, o novo pensar requer a plasticidade rizomática.  Rizoma significa uma metáfora em referente a “um tipo de caule radiciforme de alguns vegetais formado por uma miríade de pequenas raízes emaranhadas em meio a pequenos bulbos armazenatícios”, é um importante órgão de reprodução dos vegetais. Na lógica deleuzeana, os rizomas não permitem rigidez sistemática e organização disciplinar, não têm início, nem fim. São regidos por seis princípios básicos: a) conexão - nos rizomas há um emaranhado de conexões que estabelecem sempre novas conexões; b) heterogeneidade – as conexões permitem o encontro de diferentes naturezas; c) multiplicidade – o rizoma não se reduz â unidade, “não é sujeito nem objeto, mas múltiplo”; d) ruptura a-significante o rizoma não se afirma na previsibilidade, sustenta-se também pelas  rotas de fuga; e) cartografia – o mapeamento dos rizomas revelam algo a ser explorado, o devir; f) decalcomania – os rizomas possibilitam uma  transposição dinâmica dos mapeamentos.
Aproximar os princípios da educação menor e do crescimento de rizomas para as práticas em saúde, para o ensino em serviço, significa transversalizar os saberes que circulam nos espaços de forma não-disciplinar. Compreender que o processo educacional se efetiva na realidade e não no campo da abstração, que os saberes fragmentados não dão conta de apreender a complexidade singular que abarca cada ser humano em suas relações sociais. O trabalho, a sexualidade, a espiritualidade, a família, as emoções e experiências vivenciadas compreendem uma extensa rede de significações que envolve o processo de criação do conhecimento.
Antes de buscar resolutividade por um caminho cartesiano ou por ações operacionais mecânicas, a educação na saúde precisa provocar inquietações no trabalhador, torná-lo sujeito pensante de suas práticas para construção do aprendizado coletivo; buscar agenciamentos para uma estrutura dinâmica do conhecimento.


Saúde, Saberes e Sabores /dez 2012
Tema: Comunicação em Saúde: "comunicar é tornar comum" 


REFERÊNCIAS
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2ª edição – São Paulo : Boitempo, 2009 ( mundo do Trabalho). 
GALLO, Silvio. Deleuze e a educação. 2ª Edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. 
SCHNEIDER, Daniela da Cruz. Uma sub-versão em educação: possibilidades de uma pedagogia menor. P@rtes São paulo, 2012.
 ZOURABICHVILI,  Francois. O vocabulário de Deleuze. Série Conexões 4.  Rio de Janeiro : Delume Dumará : Sinergia : Ediouro, 2009.






1. Zourabichvili em sua análise sobre o vocabulário de Deleuze no verbete ‘Rizoma’ afirma que o conceito  não configura um método. Criado por Deleuze e Guattari rizoma significa um manifesto. O rizoma não tem início, nem fim. Não deve ser confundido com a comunicação, é um antimétodo que parece tudo autorizar. O seu rigor está justamente na autorização plena de permitir caminhos para o pensamento sob três pilares: 1. Pensar não é representar; 2. Não há começo real para o aprendizado ele se instala no meio; 3. Todo encontro é possível não admite exclusão de nenhum caminho para o conhecimento. Para o autor o rizoma é tão benevolente quanto seletivo: ele tem a crueldade do real, e só cresce onde efeitos determinados têm lugar. 
2. O termo precarização do trabalho refere-se a diversas mutações de caráter flexível nas relações de trabalho como prestação de serviço, trabalho por tempo determinado, terceirizações, cooperativas etc. Uma diversidade contratual que  implica em perda de direitos, desvinculação da relação pedagógica do trabalho, discriminação, exclusão social, subemprego e desemprego, como também a sujeição patronal e o enfraquecimento sindical que impede mobilização e resistência coletivas dos trabalhadores.

3. Esta frase faz parte da citação do historiado Eric Hobsbawm: "Não nos desarmemos, ainda que os tempos sejam insatisfatórios. A injustiça social ainda precisa ser denunciada e combatida. O mundo não ficará melhor por conta própria".  Hobsbawm, Eric. Tempos Interessantes, um breve século XX. Editora Companhia das Letras, 2007 - 472 páginas. 

A METÁFORA E O TRABALHO


“O que é metáfora?”

            Inicio a minha argumentação reportando-me à cena do filme “O carteiro e o poeta” de Michael Radford. O jovem carteiro Mário indaga ao poeta Pablo Neruda o que vem a ser uma metáfora. Este, primeiramente declama uma poesia, ao ouvi-la Mário fica estranho... enjoado, não pela qualidade da poesia, mas pelo movimento que o soar das palavras lhe provocaram. Relata ter se  sentido como num barco, sacudido pelas palavras. Neruda, bom professor, não perde a oportunidade de  mostrá-lo que ele fez uma metáfora.
Mário: "Mas, fazer metáfora assim, não vale. Foi sem querer".
Neruda: - "Querer não é importante. As imagens devem surgir espontaneamente".
Mário: - "Você quer dizer que o mundo todo, o mar, o céu com a chuva, as nuvens... o mundo todo, todo ele, é metáfora de alguma outra coisa?"
Nesta lógica, que metáforas envolvem o trabalho precário? A transformação do homem em mercadoria? Máquina? Robô? Lucro? Ou qualquer outro objeto descartável? Marx afirma que o trabalhador quando decai à condição de mercadoria “torna-se um ser estranho, um meio para sua existência individual”. Um ser destituído de sentido, degradado pelo trabalho alienado esvaziado de sua dimensão vital e social. Frigotto (2011, p.14) considera “um dos problemas psicossociais mais agudos da história humana (...)”.
Estas considerações assentam-se no grande contingente de profissionais lançado, anualmente, no mercado para o trabalho não-decente. Cabendo a esta classe-que-vive-do-trabalho[1] não só vender sua força de trabalho, mas corresponder ao modelo de competências, competitividade e produtividade. Esta é uma grande violência ideológica. “Aqueles que não encontram emprego ou são expulsos do mercado assim o são por incompetência ou por não terem acertado as escolhas, ou seja, as vítimas do sistema excludente viram os algozes de si mesmas” (FRIGOTTO, 2011, 46).
E este exército de mão-de-obra excedente que vive  fora do mercado movimenta outros mercados, mercados estes que movem sonhos e falsas ilusões a despeito de currículo, qualificação e titulações, levando o trabalhador já sob o espectro do desemprego a investir em graduações, especializações, Educação a distância, cursos preparatórios para concursos, MBA etc.
Desta forma, mais uma metáfora se constrói, a educação que se faz “máquina fornecedora de profissionais especializados e empregados subalternos”. (SNYDERS 2005, p. 97) Embora este tipo de formação privilegie uma racionalidade voltada para o mercado de trabalho, este mesmo mercado de trabalho não é revelado em sua inteireza para o estudante, logo se conclui que a sociedade neoliberal exige e proporciona o aumento da escolaridade para uma realidade precária, sem envolver aumento de reflexividade para o trabalhador. Para Snyders (2005, p.97) “[...] tanto a quantidade como a qualidade da mão-de-obra formada são determinadas pelos interesses em curto prazo dos monopólios”.
Há um longo e íngreme caminho a percorrer, o maior problema está nos  atalhos que buscamos para chegar mais rápido. Eles nos fazem caminhar em círculos e esgotam os esforços e os ânimos. A prática educacional hoje passa por este “descaminho”. A realidade aponta para a necessidade de reformas e os atalhos apontam para indicadores e avaliações que revelam há décadas a má qualidade do ensino e o desinteresse do cidadão em aprender nesses moldes, nesse formato obsoleto e ineficaz.  Esses dados sofríveis já falam por si só, deveriam ser subsídios para implantação de políticas educacionais, ao contrário, servem ao rechaço da sociedade, à desqualificação da educação pública e para o MEC, perdido no caminho, anunciar em rede nacional que os índices são otimistas.
Finalizo, voltando ao filme e a dúvida de Mário sobre metáfora. Educar um cidadão para a precarização vale ou não vale? Afirmo que não vale. O que é metáfora, então? Trabalho não é mercadoria. Educação  também não é mercadoria. Reformar não significa transformar. Indicadores são números e não traduzem a realidade. Autonomia e cidadania não são conteúdo didático, são valores e só serão ensinados se forem experimentados pelo educador.
Urge o tempo de se pensar mais sobre a educação e onde essa educação, hoje implantada, nos levará. É triste constatar que estamos “matando” brasileiros dentro das salas de aula, com a mais terrível e potente arma: a ideia ou a falta dela. Milhares deles morrem todos os dias, quando desistem da escola ou quando aderem à educação neoliberal, e os índices são otimistas...
Como pontuou o poeta querer não é suficiente, é necessário, muitas das vezes, que as metáforas surjam espontaneamente. 


REFERÊNCIAS:
ALVES, N, Garcia R L (orgs.). O sentido da escola. 5. ed. Petrópolis : DP ET Alli, 2008
ANTUNES, Ricardo. A dialética do trabalho: escritos de Marx e Engels (org).  São Paulo: Expressão Popular, 2004. 
________Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2ª edição – São Paulo : Boitempo, 2009 ( mundo do Trabalho).BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação. São Paulo: Brasiliense, 2006 (Coleção Primeiros passos).
FRIGOTTO, Gaudêncio (org.) Educação e crise do Trabalho: Perspectivas de final de século. 10ª edição Petrópolis, RJ: Editora Vozes (Coleção Estudos Culturais em Educação), 2011.


SNYDERS, Georges. Escola, classes e luta de classes. Tradução Leila Prado. São Paulo: Centauro, 2005




[1] O termo classe-que-vive-do-trabalho foi utilizada por Antunes (2009) em referência à expressão marxista classe trabalhadora no sentido de conferir validade contemporânea. Este termo engloba o ser social que trabalha, são trabalhadores produtivos, que produzem diretamente mais-valia, e trabalhadores improdutivos, aqueles cujas formas de trabalho são usadas como serviços, seja para uso público, seja para o capitalista. Segundo Marx o trabalho improdutivo é consumido como valor de uso e não como trabalho que cria valor de troca. O trabalho improdutivo abrange um amplo leque de assalariados, desde aqueles inseridos no setor de serviços, bancos, comércio, turismo, serviços públicos etc. (ANTUNES, 2009, p.102)