segunda-feira, 30 de setembro de 2019

A PONTE E A RESILIÊNCIA... QUEM CAI?

No filme Origem de Christopher Nolan o personagem Cobb (Leonardo Di Caprio), um especialista em entrar nas mentes humanas através do sonho, afirma que a ideia é a arma mais letal que existe. A ficção narra o ousado plano de mercenários para implantar a origem de uma ideia na mente do herdeiro de um império econômico e assim alterar o curso de grandes empreendimentos globais.

Faço uso desta alegoria para explicar minha ressalva à palavra RESILIÊNCIA.  Esse termo vem do latim e significa “saltar para trás” ou “voltar ao estado natural”. O conceito de resiliência vem sendo utilizado desde a década de 70 nas ciências naturais, referindo-se à capacidade de restauração de certos sistemas diante de agressões e ameaças no meio ambiente, bem como a propriedade dos materiais de acumular energia quando expostos a choque, percussão ou rupturas na física. Resiliência tem a ver com adaptação à situação desfavorável. Recentemente esse termo migrou para as áreas de Psicologia e Administração na gestão de pessoas e organizacional.  Desta forma, resiliência no comportamento humano envolve a capacidade que cada pessoa adquire de reagir às pressões e encontrar equilíbrio emocional perante situações difíceis ou estressantes no contexto laboral.
Qual o meu problema, então, com a resiliência? O modismo, a banalização do conceito. Como descrito na ficção, o implante da ideia como “arma” letal. Tem insatisfação, desânimo, desmotivação no ambiente de trabalho? Oficina de resiliência! Assédio moral, humilhação e exaustão da jornada? Você precisa ser mais resiliente! Crise na empresa, sucateamento, demissões? Infelizmente, optamos por dispensá-lo, escolhemos os mais resilientes... A resiliência se tornou a “galinha dos ovos de ouro” da administração. O colaborador(a) resiliente toma para si as pressões e responsabilidades do êxito e cumprimento de metas da empresa. Trata-se de um trabalhador/ trabalhadora multitarefas faz de relatórios ao treinamento, está sempre conectado numa jornada infindável que adentra o domingo, o cinema e a madrugada. Entre um sanduíche e o cafezinho, entrevista um candidato, manda e-mail, troca o cartucho da impressora, tira alguma dúvida no Google, participa de reunião e roda de conversa. Sabe delegar, mas ninguém organiza festinhas e happy hours como ele (a). No final do dia satisfeito(a) segue para a casa para terminar mais um relatório antes, é claro, de tomar uma sopinha e o antidepressivo. 
Os métodos da resiliência não migraram por acaso das ciências naturais para as áreas humanas e econômicas. Envolve um novo ethos do modelo produtivo e organizacional do capitalismo Pós-Industrial. Baseado em teorias de produção como o fordismo, o taylorismo e o keynesianismo, a acumulação de capital teve seu apogeu do pós-guerra até a década de 70, quando começou a anunciar seu esgotamento. Vários fatores contribuíram para este quadro, os mais evidentes foram: a queda da taxa de lucro por conta do aumento do preço da força de trabalho para o controle social da produção no Pós-Guerra; a retração ao consumo devido ao crescimento do desemprego estrutural; a hipertrofia da esfera financeira, a maior concentração de capitais; a crise do Welfare State, o incremento das privatizações e a flexibilização do processo produtivo (ANTUNES, 2009, p. 31). Por ser considerada uma grave crise estrutural requereu novos padrões de dominação e controle do capital. Para o autor,  a reorganização do capital exigiu uma reorganização no sistema ideológico e político de dominação com expressão no neoliberalismo, no Estado mínimo, nas privatizações e desregulamentação dos direitos do trabalho.
Trata-se de uma lógica muito destrutiva, ou seja, o capitalismo procura adaptar-se (resiliência) diante da profunda crise de produção. Para isso necessita se reinventar e  flexibilizar o processo produtivo em esfera global. De que forma? Com a expulsão da força de trabalho em patamares jamais vistos e destituição de direitos e garantias para manter a acumulação de capital. Por se tratar de uma estratégica perversa, para amenizar tamanha hecatombe na tríade de produção (agrícola, Industrial e de Serviços) ele se apropria, resignifica e utiliza palavras e expressões com a intenção de colocar esse fenômeno numa formatação mais humanizada. Para Ricardo Antunes (2018), há um novo dicionário corporativo, no qual expressões como “colaboradores” “parceiros”, “sinergia” “resiliência”, “responsabilidade social”, “sustentabilidade”, “metas”, e tantas outras circulam no dialeto empresarial. Um novo vocabulário e metamorfoses que para o trabalhador ou trabalhadora traduz-se como: “mais precarização”, “mais informalidade”, “mais subemprego”, “mais desemprego”, “mais trabalhadores intermitentes”, “mais eliminação de postos de trabalho” e ”menos pessoas trabalhando com direitos preservados”.
Numa busca rápida no Google encontro uma variedade de sites sobre o tema.
  • Insatisfação? Sobrecarga de responsabilidade? Metas defasadas? Estresse?
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 As estratégias para implantação e divulgação do valor da resiliência no mundo corporativo, como capacidade desenvolvida pelo trabalhador para suportar as pressões laborais, me reportam ao conceito de  intelectuais  orgânicos de Antonio Gramsci. Para o autor, o conhecimento é luta política que se trava na superestrutura de um determinado bloco histórico. Refere-se à hegemonia na esfera das mentalidades. Está para além da ação, por isso envolve a conquista de um novo nível de cultura. Trata-se da descoberta de coisas que não se conhecia e o esforço de desvendar, por dentro, a concepção de mundo de um determinado grupo social, de uma dada sociedade.
Os intelectuais orgânicos, na análise gramsciana, são diretamente ligados a classe ou empresas, tal cooptação estabelece nova forma de pensar e organizar interesses, conquistar mais poder para obter mais controle. Assim, Gramsci afirma sobre o intelectual orgânico: “o empresário capitalista cria junto de si o técnico industrial, o especialista em economia política, os organizadores de uma nova cultura, de um novo sistema legal etc. Esses estão ativamente envolvidos na sociedade, isto é, lutam constantemente para mudar mentalidades e expandir mercados.
Seria esse o admirável mundo novo da resiliência? Quanto mais resiliente for o trabalhador, mais hegemônico torna-se o sistema produtivo? Essa lógica me faz lembrar o trabalhador/trabalhadora como se estivesse nas Olimpíadas do Faustão - A Ponte do Rio que Cai, quem lembra? Para vencer a prova os participantes tinham que completar o percurso sem cair. A tarefa consistia em atravessar a ponte correndo, com chuva, piso escorregadio e levando bolada. Caso desequilibrasse, o participante deveria levantar-se sem cair da ponte ( para não ser desclassificado) e novamente de pé começar a correr e  tome bolada!  Nesta referência lúdica e louca entre o mercado de trabalho (a produtividade e o trabalhador) e o desafio da ponte do rio que cai... pergunto: Quem de fato cai? É o rio que cai? Cai a ponte ou quem está em cima da ponte? Para concluir uso essa analogia para lembrar que o dialeto corporativo está aí!  A resiliência também! Defendida, divulgada e glamorizada para que os trabalhadores  atravessem a ponte - TODOS OS DIAS!!!! Apesar do piso escorregadio, da chuva e das boladas porque o rio e a ponte nunca cairão.
Realmente, a IDEIA pode ser uma arma letal!

REFERÊNCIAS 
ANTUNES, Ricardo. A dialética do trabalho: escritos de Marx e Engels (org).  São Paulo: Expressão Popular, 2004.
__________. ALVES, Giovanni. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educ. Soc., Campinas, vol. 25, n. 87, p. 335-351, maio/ago. 2004 335 Disponível em http://www.cedes.unicamp.br . Acesso em: 18 fev 2012
__________. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2ª edição – São Paulo : Boitempo, 2009 ( mundo do Trabalho).
__________ O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. Ed. - São Paulo : Boitempo, 2018. 
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira 2004

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