sexta-feira, 20 de setembro de 2019

NÃO EXISTE AMOR EM SP


Amo São Paulo!  Durante muito tempo resisti em conhecer a maior cidade da América Latina. Achava aglomerada demais, indiferente demais, caótica demais!  Todos têm pressa, ternos, tailleurs, buzinas, correria insana, o coração taquiarrítmico do Brasil não pode parar, nunca!. Puro preconceito porque na verdade falava de algo que não conhecia. Hoje a megalópole me conquistou. Os arranha-céus espelhados, a multicultural Avenida Paulista, a lindeza de “As Meninas” do MASP, a subida da Consolação que sempre  me lembra a  São Silvestre,  o glamour da Oscar Freire, sem falar da gastronomia... Como não amar os restaurantes, cantinas, feiras, mercados?  Um festival de delícias! São Paulo é rua, praça, manifestos, parques, autódromo, bicicletas e patins, São Paulo é botequim!


Avenida Paulista SP
Segundo o pesquisador Assis Ângelo, São Paulo é a cidade mais cantada do Brasil. Pensou que fosse o Rio de Janeiro? Não! São mais de 3000 músicas que cantam os seus encantos. Que mistério há nesse lugar que desperte tenta inspiração? Talvez a inspiração brote do estranhamento, como  Caetano tão bem explica em Sampa: É que quando eu cheguei por aqui eu nada    entendi,  da dura poesia concreta de tuas esquinas, da deselegância discreta de tuas meninas  (...) E quem vem do outro sonho feliz da cidade  aprende depressa a chamar-te de realidade. Porque és o avesso, do avesso, do avesso, do avesso”.  Pode ser inspiração do  desconforto ambíguo como declara  o rapper Criolo: Não existe amor em SP. Um labirinto místico onde os grafites gritam. Não dá pra descrever numa linda frase de um postal tão doce. São Paulo é um buquê. Buquê são flores mortas num lindo arranjo feito pra você. Não existe amor em SP!   Os Racionais  Mc’s completam, (...) é estresse concentrado, um coração ferido por metro quadrado”.  

Com saudade da filha e do agito da cidade retornei mês passado a São Paulo, dessa vez levei minha mãe de 82 anos  para conhecer e curtir um pouco de Sampa. No nosso giro pela cidade circulamos com  motoristas de aplicativos do Maranhão, de Pernambuco, do Rio de Janeiro, do Paraná e até  gringo. Nos  restaurantes, museus e lojas  nos atenderam jovens simpáticos do Espírito Santo, do Pará, de Minas Gerais e de tantos outros Brasis. Numa loja na Oscar Freire minha mãe conversando com um vendedor do Piauí indagou - Uéee! Cadê os paulistas (paulistanos) dessa cidade? - Estão todos no Itaim! Respondeu o jovem com sagacidade. Em sua ingenuidade minha mãe não entendeu a lógica do avesso, do avesso, do avesso!

Interessante constatar quantas cidades cabem dentro de uma cidade. A cidade dos grandes conglomerados financeiros, das fábricas, dos restaurantes, do turismo, dos bairros de imigração, do submundo, dos retirantes, dos alagados, tem uma cidade para cada um. .  A desigual geografia cerca os contrastes dos jovens do Itaim  por muros físicos ou imaginários, mas também agrega os outsiders por pontes, viadutos e esquinas.  A dinâmica do espaço social em que ocorrem movimentos de aproximação e afastamento, onde se produzem e reelaboram conhecimentos, valores e significados. Um terreno cultural caracterizado por vários graus de acomodação, contestação e resistência, uma pluralidade de linguagens e objetivos conflitantes.

      Na realidade deste caleidoscópio urbano descubro a existência da Esquina dos Desempregados em São Paulo - essa esquina fica entre  as ruas Barão de Itapetininga  e Dom José de Barros no Centro. Trata-se de um calçadão numa região repleta de agências de empregos temporários, subempregos e pequenos bicos. Diariamente operários da construção civil se dirigem para a região com documentos e uniformes na esperança de conseguir uma obra, uma ocupação, um trampo ou um bico.  Essa prática existe desde a década de 70, anteriormente situada no Brás e na Luz. Por conta do crescente desemprego, a freqüência de agenciadores torna-se cada vez mais escassa, quando aparece algum  circula, conversa com um e outro, verifica documentos e pechincha o valor do serviço ou contrato temporário. Na inexistência de vaga ou quando dispensados, o dia está perdido, eles conversam, relembram épocas melhores, tomam uma cachaça e voltam para casa. A escassez de vagas aumenta o movimento da esquina, a exploração da força de trabalho, a miséria e o consumo de álcool e diminui a esperança dos operários principalmente os mais idosos e desqualificados.

         Esse fenômeno me faz recordar das cenas sobre a Grande Depressão de 1929, quando a massa de desempregados (homens, mulheres e crianças) se dirigia para as portas das fábricas e indústrias sujos, sofridos e famintos e aos gritos se candidatavam para vagas temporárias ou bicos. Triste constatar que quase um século depois o trabalhador continua no mundo das incertezas. No que tange as relações do trabalho no Brasil estamos sob a ditadura (legitimada pelo voto) não só política, mas das reformas neoliberais, das tecnologias, da lógica do não-emprego, do mercado, da uberização dos serviços, da flexibilização e da empregabilidade. “a galinha dos ovos de ouro” para a lucratividade e hegemonia do capital.  

           Em breve voltarei a observar a cidade, mas da próxima vez do ponto de vista dos grafites. Não os grafites de grife, criados a partir da estética dos contratos para enfeitar os muros da cidade, mas pelos grafites descritos por Criolo.  Aqueles que gritam, pedem socorro, desbotam a cor, denunciam a dor da cidade e por tanto incomodar foram calados. Realmente Não Existe Amor em SP!
Não existe amor na Esquina dos Desempregados de SP nem na esquina de qualquer outro lugar!



Créditos:
Não existe amor em SP - Criolo
Sampa – Caetano Velloso
Vida Loka (2ª parte) - Racionais Mc’s

Nenhum comentário:

Postar um comentário