segunda-feira, 23 de setembro de 2019

PRO DIA NASCER FELIZ...


Sou da geração do concurso público. Na minha vida fiz diversos deles, passei em alguns, outros fui reprovada e tive vontade de fazer muitos outros. Meus amigos, colegas, primos e vizinhos também. Fazia parte do rito de passagem após a conclusão do antigo segundo grau, durante a faculdade ou após a formatura. Toda semana, quarta feira se não me engano, era certo passar na banca comprar o Jornal dos Esportes, saindo o edital, estava dada a largada - inscrição, apostila, estudo dirigido, aulão,simulados, prova e resultado. Passou? Não foi dessa vez! Fiquei lá atrás!Vou tentar outro... Vai abrir CEF, Tem Correios também! A Vida  seguia.

Havia uma expectativa de acesso em igualdade de condições para todos nós. Éramos jovens, diplomados cheios de sonhos e projetos avivados semanalmente pela coluna de concursos do jornalzinho rosa. Não consigo descrever a euforia, a emoção, a taquicardia no momento da conferência da lista de classificados do Diário Oficial do Estado ou da União e a decepção também. Interessante que nesta empreitada os jovens tomavam para si toda a responsabilidade do êxito, o resultado dependia única e exclusivamente do empenho e sorte do candidato, a tal meritocracia. Nessa lógica cartesiana, não havia espaço para considerar a estrutura desigual de formação, as lacunas epistemológicas da educação básica, a pressão emocional, a capacidade de reagir ao estresse, o medo, a resistência, a falta de tempo e outros obstáculos que qualquer concurso traduz. Desta forma, o mérito e o fracasso eram sempre individuais e não estruturais. Vivi tudo isso.

Essa geração, da qual fiz parte, investiu seu conhecimento, potencialidades e tempo em prol da aprovação em concurso. Ser um Servidor Público era motivo de orgulho, era assegurar o sustento talvez  na  única forma de inserção e ascensão do profissional “baixo clero” na classe média. Não sei assegurar como, mas algo se perdeu neste caminho entre a primavera de 1989, ano que da minha convocação na secretaria de saúde do estado, e o inverno bolsonarista de 2019. Dormimos no século XX e despertamos no século XXI, com saculejos e gritos de neoliberais de verde e amarelo ardidos em ódio contra o funcionalismo público. Acordamos já condenados, após julgamento sumário sob acusação de falência da máquina pública, baixa qualidade dos serviços, privilégios, super salários e o astronômico rombo da Previdência. 

Como as criaturas desprezadas no Inferno de Dante, as razões para  a depauperação e futura extinção do servidor público baseiam-se na baixa produtividade do serviço prestado e o desgaste financeiro da máquina pública em sustentá-lo, o que torna essa relação deficitária. Esse é o consenso nos noticiários, jornais, entrevistas, discursos políticos, no ônibus, no elevador – afinal, somos todos coaches financeiros!!! No entanto, para além  dessa alienação midiática, afirmo que qualquer um de nós  conhece pelo menos uma meia dúzia de servidores públicos mal remunerados, honestos, com vida simples, endividados que cumprem com suas obrigações laborais assiduamente. Se conhecemos pelo menos meia dúzia de servidores com baixos salários, responsáveis e éticos,  onde estão os marajás com seus super salários? Em Brasília? Nos altos escalões dos ministérios? Nos gabinetes? O peso da folha de pagamento não se justifica pelo salário da massa de policiais, professores, enfermeiros, médicos, administrativos dos municípios, estados e da União. Sim, os coaches financeiros do Facebook esquecem que o serviço público atua desde a década de 90 numa lógica neoliberal, pautada na flexibilização e precarização do trabalho, logo  o entrave da máquina estatal envolve os salários dos gestores, as gratificações da alta administração, as licitações fraudulentas, as privatizações e terceirizações de serviços, o favorecimento político, os projetos eleitoreiros, as campanhas publicitárias, que permanecerão  apesar da extinção do funcionalismo.

Fico imaginando o trabalho dos historiadores, sociólogos, jornalistas do Séc. XXII (isso mesmo, pesquisadores de alguma Universidade Cósmica no ano de 2145) tentando compreender o fenômeno de desmantelamento do Serviço Público no Brasil no século XXI. Vão ter muito trabalho... pilhas de Folhas Dirigidas,  editais, cursinhos on-line,  entrevistas, greves, licitações, denúncias do Fantástico, da Revista Veja etc.  Provavelmente essas narrativas históricas serão submetidas às pesquisas, análises, interpretações ou alguma forma de Inteligência Artificial, ou mobilidade no espaço-tempo... Sei Lá! Só espero que os teóricos do século XXII avaliem o contexto histórico, dialoguem com as fontes e outros campos do saber e problematizem os fatos para que compreendam a realidade do mundo do trabalho  na sua própria contemporaneidade.   Nesse sentido, amo saber que historia é a trajetória (humana) do homem no tempo. Um terreno escorregadio e cheio de imprecisão onde as temporalidades conectam passado e  futuro. 


  Para se ter uma ideia, em 1755 um grande terremoto devastou Lisboa. Numa manhã a cidade ruiu com um terremoto de 9,0 graus na escala Richter, seguido de um enorme tsunami e incêndio que durou dias totalizando mais de 50 mil mortos. Esse catastrófico desastre mudou o imaginário de um povo, vieram as reformas pombalinas em Lisboa, houve ascensão do iluminismo com a crítica da razão pelo filósofo Voltaire a despeito da vontade absoluta de Deus, Rousseau confirmou sua teoria do Contrato social e Kant buscou respostas do evento  nos fenômenos da natureza.  O desastre, considerado o maior de Portugal, inaugurou estudos sobre a sismologia na Europa, e como não podia deixar de ser, as contas da reconstrução da cidade chegaram nas colônias portuguesas de Além-Mar. No Vice Reino do Brasil houve  a expulsão dos Jesuítas da colônia e da Corte e aumento dos  impostos nas Minas Gerais (Brasil) medida que   gerou  revolta dos mineiros culminando posteriormente na inconfidência mineira. Desta forma, o tempo histórico fluiu pelas imprevisibilidades, humanas, ambientais ou cósmicas, do desastre natural a revoltas coloniais em outro continente.  

Pergunto então, qual a relação entre a população de Lisboa do séc. XVIII e o servidor público do Brasil do século XXI? Estamos expostos às vicissitudes da história, um no passado e outro no Tempo Presente. Houve um terremoto, um tsunami e um incêndio em Lisboa, a cidade foi destruída pela força da natureza. Hoje um terremoto político reformista tenta devastar o funcionalismo público no Brasil, em especial no Rio de janeiro. A história dirá se haverá reconstrução. Desejo, como Servidora Pública, que no futuro quando os estudantes do século XXII abrirem seus “nanochips” de História no capítulo sobre  A Ditadura da Nova Política no Brasil  possam compreender as relações de trabalho vigente em seu tempo a partir dessa devastação (assim como houve em Lisboa pós- terremoto). Espero que o novo modelo de trabalho permita a subsistência e felicidade do trabalhador, torço ainda que as atuais e "promissoras" relações de trabalho na égide neoliberal, precarização, uberização, pejotização, flexibilização, zero Hour contract dentre outros,  se houver no futuro, não exproprie tanto o trabalhador, não humilhe tanto, não leve ao suicídio, nem adoeça  os trabalhadores e trabalhadoras  do Brasil. 

Por fim, faço votos que exista vida e sentido  para além do trabalho. A História terá papel relevante na compreensão desse fenômeno, nunca no seu julgamento, este cabe aos juízes, não aos historiadores. O saudoso Hobsbawm, em um dos seus últimos livros, afirmou:
“A melhor história é escrita por aqueles que perderam algo. Os vencedores pensam que a história terminou bem porque eles estavam certos, ao passo que os perdedores perguntam por que tudo foi tão diferente, e esta é uma questão muito mais relevante.” 

Concordo com  Hobsbawme e escolho a história relevante. 

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