Sou da geração
do concurso público. Na minha vida fiz diversos deles, passei em alguns, outros
fui reprovada e tive vontade de fazer muitos outros. Meus amigos, colegas,
primos e vizinhos também. Fazia parte do rito de passagem após a conclusão do
antigo segundo grau, durante a faculdade ou após a formatura. Toda semana,
quarta feira se não me engano, era certo passar na banca comprar o Jornal dos
Esportes, saindo o edital, estava dada a largada - inscrição, apostila, estudo
dirigido, aulão,simulados, prova e resultado. Passou? Não foi dessa vez! Fiquei
lá atrás!Vou tentar outro... Vai abrir CEF, Tem Correios também! A Vida seguia.
Havia uma expectativa de acesso
em igualdade de condições para todos nós. Éramos jovens, diplomados cheios de
sonhos e projetos avivados semanalmente pela coluna de concursos do jornalzinho
rosa. Não consigo descrever a euforia, a emoção, a taquicardia no momento da
conferência da lista de classificados do Diário Oficial do Estado ou da União e
a decepção também. Interessante que nesta empreitada os jovens tomavam para si
toda a responsabilidade do êxito, o resultado dependia única e exclusivamente
do empenho e sorte do candidato, a tal meritocracia. Nessa lógica cartesiana, não havia espaço para
considerar a estrutura desigual de formação, as lacunas epistemológicas da
educação básica, a pressão emocional, a capacidade de reagir ao estresse, o
medo, a resistência, a falta de tempo e outros obstáculos que qualquer
concurso traduz. Desta forma, o mérito e o fracasso eram sempre individuais e
não estruturais. Vivi tudo isso.
Essa geração, da qual fiz parte, investiu seu conhecimento, potencialidades e tempo em prol da aprovação em concurso. Ser um Servidor Público era motivo de
orgulho, era assegurar o sustento talvez
na única forma de inserção e
ascensão do profissional “baixo clero” na classe média. Não sei assegurar como, mas algo se perdeu neste caminho entre a primavera de 1989, ano
que da minha convocação na secretaria de saúde do estado, e o inverno
bolsonarista de 2019. Dormimos no século XX e despertamos no século XXI, com saculejos e gritos de neoliberais de verde e amarelo ardidos em ódio contra o funcionalismo
público. Acordamos já condenados, após julgamento sumário sob acusação de
falência da máquina pública, baixa qualidade dos serviços, privilégios, super
salários e o astronômico rombo da Previdência.
Como as criaturas desprezadas no Inferno de Dante, as razões para a depauperação
e futura extinção do servidor público baseiam-se na baixa produtividade do serviço
prestado e o desgaste financeiro da máquina pública em sustentá-lo, o que torna
essa relação deficitária. Esse é o consenso nos noticiários, jornais, entrevistas,
discursos políticos, no ônibus, no elevador – afinal, somos todos coaches financeiros!!! No entanto, para além dessa alienação midiática, afirmo que qualquer um de nós conhece pelo menos uma meia dúzia de servidores públicos mal
remunerados, honestos, com vida simples, endividados que cumprem com suas
obrigações laborais assiduamente. Se conhecemos pelo menos meia dúzia de
servidores com baixos salários, responsáveis e éticos, onde estão os marajás com seus
super salários? Em Brasília? Nos altos escalões dos ministérios? Nos gabinetes?
O peso da folha de pagamento não se justifica pelo salário da massa de policiais,
professores, enfermeiros, médicos, administrativos dos municípios, estados e da
União. Sim, os coaches financeiros do Facebook esquecem que o serviço público atua desde
a década de 90 numa lógica neoliberal, pautada na flexibilização e precarização do trabalho, logo o entrave da máquina estatal envolve os salários
dos gestores, as gratificações da alta administração, as licitações
fraudulentas, as privatizações e terceirizações de serviços, o favorecimento
político, os projetos eleitoreiros, as campanhas publicitárias, que permanecerão
apesar da extinção do funcionalismo.
Fico imaginando o trabalho dos historiadores, sociólogos, jornalistas do
Séc. XXII (isso mesmo, pesquisadores de alguma Universidade Cósmica no ano de
2145) tentando compreender o fenômeno de desmantelamento do Serviço Público no
Brasil no século XXI. Vão ter muito trabalho... pilhas de Folhas Dirigidas, editais, cursinhos on-line, entrevistas, greves, licitações, denúncias do
Fantástico, da Revista Veja etc. Provavelmente essas narrativas históricas serão
submetidas às pesquisas, análises, interpretações ou alguma forma de
Inteligência Artificial, ou mobilidade no espaço-tempo... Sei Lá! Só espero que os teóricos do século XXII avaliem o contexto histórico, dialoguem com as
fontes e outros campos do saber e problematizem os fatos para que compreendam a
realidade do mundo do trabalho na sua
própria contemporaneidade. Nesse
sentido, amo saber que historia é a trajetória (humana) do homem no tempo. Um
terreno escorregadio e cheio de imprecisão onde as temporalidades conectam
passado e futuro.
Para se ter uma ideia, em 1755 um grande
terremoto devastou Lisboa. Numa manhã a cidade ruiu com um terremoto de 9,0
graus na escala Richter, seguido de um enorme tsunami e incêndio que durou dias
totalizando mais de 50 mil mortos. Esse catastrófico desastre mudou o
imaginário de um povo, vieram as reformas pombalinas em Lisboa, houve ascensão
do iluminismo com a crítica da razão pelo filósofo Voltaire a despeito da vontade
absoluta de Deus, Rousseau confirmou sua teoria do Contrato social e Kant
buscou respostas do evento nos fenômenos
da natureza. O desastre, considerado o
maior de Portugal, inaugurou estudos sobre a sismologia na Europa, e como não
podia deixar de ser, as contas da reconstrução da cidade chegaram nas colônias portuguesas
de Além-Mar. No Vice Reino do Brasil houve a expulsão dos Jesuítas da colônia e da Corte e
aumento dos impostos nas Minas Gerais
(Brasil) medida que gerou revolta dos mineiros culminando
posteriormente na inconfidência mineira. Desta forma, o tempo histórico fluiu pelas imprevisibilidades, humanas,
ambientais ou cósmicas, do desastre natural a revoltas coloniais em outro continente.
Pergunto então, qual a relação entre a população de
Lisboa do séc. XVIII e o servidor público do Brasil do século XXI? Estamos
expostos às vicissitudes da história, um no passado e outro no Tempo Presente. Houve
um terremoto, um tsunami e um incêndio em Lisboa, a cidade foi destruída pela força da
natureza. Hoje um terremoto político reformista tenta devastar o funcionalismo público
no Brasil, em especial no Rio de janeiro. A história dirá se haverá
reconstrução. Desejo, como Servidora Pública, que no futuro quando os estudantes do século XXII abrirem seus “nanochips” de
História no capítulo sobre A Ditadura da Nova Política no Brasil possam compreender as relações de trabalho vigente em seu tempo a partir dessa devastação
(assim como houve em Lisboa pós- terremoto). Espero que o novo modelo de
trabalho permita a subsistência e felicidade do trabalhador, torço ainda que as
atuais e "promissoras" relações de trabalho na égide neoliberal, precarização,
uberização, pejotização, flexibilização, zero
Hour contract dentre outros, se
houver no futuro, não exproprie tanto o trabalhador, não humilhe tanto, não leve ao
suicídio, nem adoeça os trabalhadores e
trabalhadoras do Brasil.
Por fim, faço votos que exista vida e sentido para além do trabalho. A História terá papel relevante na
compreensão desse fenômeno, nunca no seu julgamento, este cabe aos juízes, não
aos historiadores. O saudoso Hobsbawm, em um dos seus
últimos livros, afirmou:
“A melhor história é escrita por aqueles que perderam
algo. Os vencedores pensam que a história terminou bem porque eles estavam
certos, ao passo que os perdedores perguntam por que tudo foi tão diferente, e
esta é uma questão muito mais relevante.”
Concordo com Hobsbawme e escolho a história relevante.
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