As palavras do confinamento nem sempre obedecem ao tempo cronológico, à coerência temática, à norma ortográfica ou à estética. As palavras do confinamento são livres e libertárias. Elas ecoam entre a discussão e o silêncio, entre um meme engraçado e o choro de saudade, entre uma música e a mensagem no grupo familiar, Palavras ecoam - fiquem em casa!!! E mais tarde ecoam num panelaço: Fora Bolsonaroooo!!!
Não fomos feitos para prisões, embora não tenhamos a mínima empatia com os encarcerados. Aliás, sempre julgamos o tempo de cumprimento de pena (dos outros) ínfimos e fáceis de cumprir! Falo de “prisão” com aspas, muitas aspas. Prisão não corresponde aos cômodos higienizados da nossa casa, com almofadas, wifi, Netflix, água gelada (até uma cervejinha importada), alimentação fitness e sobremesa diet , não é prisão! Pai perdoa porque não sabemos o significado da palavra prisão!
O que vivemos hoje não é prisão, óbvio! Trata-se de isolamento
social durante a pandemia! Uma medida sanitária drástica, mas importante, para interromper a circulação de
pessoas e serviços e assim reduzir a curva de transmissão viral. Não há lugar seguro, nem um sequer! Vivemos o momento mais
dramático dos últimos 100 anos, a Era dos extremos que o saudoso historiador Hobbsbawm
denominava o século XX referindo-se às
Grandes Guerras, às crises econômicas, à corrida espacial, à Guerra Fria, ao
colonialismo, deram lugar
a um vírus no século XXI. Temos uma
pandemia!
O significado da palavra Pandemia só existia nos dicionários e livros de biologia, uma epidemia de grandes proporções cujo agente etiológico
(infeccioso) espalha-se entre os humanos sem respeitar barreiras geográficas,
econômicas ou climáticas. Entre 1918 e
1919, houve a pandemia da gripe espanhola, na verdade ela começou em campos de treinamento militar
nos EUA e espalhou pelo mundo atingindo 500 milhões de pessoas e dizimando aproximadamente 50 milhões.
Na condição de profissional de saúde e servidora pública do SUS, nunca vivi uma pandemia., nem eu e nem ninguém. Só
conhecemos pandemia através dos filmes, sempre foi sucesso de bilheteria a ideia de
devastação por um vírus mortal nas telas de cinema, mas não estávamos preparados para viver essa ficção. O filósofo Braudillard, em seu livro Simulacro e simulação (1980), afirma
que a sociedade busca a hiper-realidade
para superar a sua realidade contraditória. Sim, de fato são interessantes as epidemias, a guerra bacteriológica dos
estúdios de cinema, da cidade imaginada, da arquitetura cenográfica, dos heróis
e heroínas num jogo de ilusões. Em fevereiro de 2020, a pandemia do coronavírus saiu
da hiper-realidade ficcional dos estúdios para contagiar o planeta.
Diferente da gripe espanhola, o coronavírus teve seus primeiros registros em dezembro de 2019 na cidade de Wuhan,
na China. Apesar da seriedade da crise sanitária vivenciada pela China, as autoridades sanitárias de todo o globo postergaram o que estava por vir... talvez ignorando um outro conceito tão importante na geopolítica chamado aldeia global. O termo aldeia global engloba a relação do progresso tecnológico e
o encurtamento das distâncias tempo-espaço. O mundo foi destribalizado pela
tecnologia e pela circulação de pessoas e serviços, assim a borboleta que bateu
as asas em Wuhan iria fazer (e fez) tufão na Europa, nos EUA e aqui também!
Enquanto em fevereiro em Wuhan
o coronavirus aterrorizava a população, colapsava o sistema de saúde e econômico, aqui no Brasil
o carnaval bombava em todos os estados com megablocos arrastando multidões de turistas. No primeiro momento circulavam ideias otimistas a despeito da
diminuição da virulência do covid-19 pela questão climática do continente. Aqui
a chapa esquenta literalmente! Vamos combinar que brasileiro não tem medo de vírus, aliás o brasileiro tem medo de
pouca coisa na vida! Nosso povo senta nas calçadas, frita nas praias, toma água
contaminada, nada nas enchentes, ingere
doses cavalares de agrotóxicos, almoça e janta fast food e de uns tempos
pra cá já nem acredita mais em vacina. Brasileiro é Highlander!!! Acreditou-se
que o “calor dos trópicos” e o fôlego do
brasileiro fossem inativar o vírus, isso não ocorreu. E ainda no
ziriguidum do carnaval, o Ministério da
Saúde anuncia o primeiro caso “importado” na cidade de São Paulo.
A partir do registro do caso 1, vieram os seguintes, mais outros, os casos graves e óbitos. Assim, o mês de março acordou o brasileiro (ainda de ressaca) para a realidade e assuntos até então nem um pouco significativos do cotidiano; o SUS tem condições de suportar a pandemia? Temos
profissionais de saúde capacitados? Há leitos de CTI para todos? O que é EPI
(equipamento de proteção individual)? Quarentena X isolamento social... O
infectologista falou sobre transmissão... O epidemiologista orientou sobre sintomas...
A Fiocruz está pesquisando vacina! Os pesquisadores da USP estão testando
ventiladores! O crescimento exponencial
vai subir (Ai meu Deus!) A curva epidêmica tem que achatar... Coloca
máscara, tira máscara, toma vitamina D,
passa álcool gel, lave as mãos... Chegaaaa!!!!
O filósofo Byung –Chul Han, em seu livro Sociedade da transparência
(2017), afirma que os habitantes digitais estão ligados em rede e têm uma
intensiva comunicação entre si. Trata-se de uma população carcerária da hipercomunicação.
Nossa prisão digital não tem muros, tem
exposição e vigilância mútuas ilusoriamente disfarçadas de liberdade. A pandemia na era da hipercomunicação maltrata
em tempo real. Para o autor, “mais informações e mais comunicação não
clarificam o mundo; a transparência tampouco o torna clarividente. A massa de
informações não gera verdade, e quanto mais se liberam informações tanto mais
transparente torna-se o mundo. Por isso a hiperinformação e a hipercomunicação
não trazem luz à escuridão” (p.96).
Apesar do humor incontestável do brasileiro,
da capacidade desse povo ressurgir das cinzas com riso, graça e alegria, na verdade estamos com medo. Com medo e confusos no meio dessa
escuridão de informações, de ações governamentais toscas e do número dramático de vidas perdidas, porque sabemos
que não somos expectadores de um filme de ficção.
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