segunda-feira, 30 de setembro de 2019

A PONTE E A RESILIÊNCIA... QUEM CAI?

No filme Origem de Christopher Nolan o personagem Cobb (Leonardo Di Caprio), um especialista em entrar nas mentes humanas através do sonho, afirma que a ideia é a arma mais letal que existe. A ficção narra o ousado plano de mercenários para implantar a origem de uma ideia na mente do herdeiro de um império econômico e assim alterar o curso de grandes empreendimentos globais.

Faço uso desta alegoria para explicar minha ressalva à palavra RESILIÊNCIA.  Esse termo vem do latim e significa “saltar para trás” ou “voltar ao estado natural”. O conceito de resiliência vem sendo utilizado desde a década de 70 nas ciências naturais, referindo-se à capacidade de restauração de certos sistemas diante de agressões e ameaças no meio ambiente, bem como a propriedade dos materiais de acumular energia quando expostos a choque, percussão ou rupturas na física. Resiliência tem a ver com adaptação à situação desfavorável. Recentemente esse termo migrou para as áreas de Psicologia e Administração na gestão de pessoas e organizacional.  Desta forma, resiliência no comportamento humano envolve a capacidade que cada pessoa adquire de reagir às pressões e encontrar equilíbrio emocional perante situações difíceis ou estressantes no contexto laboral.
Qual o meu problema, então, com a resiliência? O modismo, a banalização do conceito. Como descrito na ficção, o implante da ideia como “arma” letal. Tem insatisfação, desânimo, desmotivação no ambiente de trabalho? Oficina de resiliência! Assédio moral, humilhação e exaustão da jornada? Você precisa ser mais resiliente! Crise na empresa, sucateamento, demissões? Infelizmente, optamos por dispensá-lo, escolhemos os mais resilientes... A resiliência se tornou a “galinha dos ovos de ouro” da administração. O colaborador(a) resiliente toma para si as pressões e responsabilidades do êxito e cumprimento de metas da empresa. Trata-se de um trabalhador/ trabalhadora multitarefas faz de relatórios ao treinamento, está sempre conectado numa jornada infindável que adentra o domingo, o cinema e a madrugada. Entre um sanduíche e o cafezinho, entrevista um candidato, manda e-mail, troca o cartucho da impressora, tira alguma dúvida no Google, participa de reunião e roda de conversa. Sabe delegar, mas ninguém organiza festinhas e happy hours como ele (a). No final do dia satisfeito(a) segue para a casa para terminar mais um relatório antes, é claro, de tomar uma sopinha e o antidepressivo. 
Os métodos da resiliência não migraram por acaso das ciências naturais para as áreas humanas e econômicas. Envolve um novo ethos do modelo produtivo e organizacional do capitalismo Pós-Industrial. Baseado em teorias de produção como o fordismo, o taylorismo e o keynesianismo, a acumulação de capital teve seu apogeu do pós-guerra até a década de 70, quando começou a anunciar seu esgotamento. Vários fatores contribuíram para este quadro, os mais evidentes foram: a queda da taxa de lucro por conta do aumento do preço da força de trabalho para o controle social da produção no Pós-Guerra; a retração ao consumo devido ao crescimento do desemprego estrutural; a hipertrofia da esfera financeira, a maior concentração de capitais; a crise do Welfare State, o incremento das privatizações e a flexibilização do processo produtivo (ANTUNES, 2009, p. 31). Por ser considerada uma grave crise estrutural requereu novos padrões de dominação e controle do capital. Para o autor,  a reorganização do capital exigiu uma reorganização no sistema ideológico e político de dominação com expressão no neoliberalismo, no Estado mínimo, nas privatizações e desregulamentação dos direitos do trabalho.
Trata-se de uma lógica muito destrutiva, ou seja, o capitalismo procura adaptar-se (resiliência) diante da profunda crise de produção. Para isso necessita se reinventar e  flexibilizar o processo produtivo em esfera global. De que forma? Com a expulsão da força de trabalho em patamares jamais vistos e destituição de direitos e garantias para manter a acumulação de capital. Por se tratar de uma estratégica perversa, para amenizar tamanha hecatombe na tríade de produção (agrícola, Industrial e de Serviços) ele se apropria, resignifica e utiliza palavras e expressões com a intenção de colocar esse fenômeno numa formatação mais humanizada. Para Ricardo Antunes (2018), há um novo dicionário corporativo, no qual expressões como “colaboradores” “parceiros”, “sinergia” “resiliência”, “responsabilidade social”, “sustentabilidade”, “metas”, e tantas outras circulam no dialeto empresarial. Um novo vocabulário e metamorfoses que para o trabalhador ou trabalhadora traduz-se como: “mais precarização”, “mais informalidade”, “mais subemprego”, “mais desemprego”, “mais trabalhadores intermitentes”, “mais eliminação de postos de trabalho” e ”menos pessoas trabalhando com direitos preservados”.
Numa busca rápida no Google encontro uma variedade de sites sobre o tema.
  • Insatisfação? Sobrecarga de responsabilidade? Metas defasadas? Estresse?
  •  Bora virar esse jogo!!!!
  • Não existe montanha sem subida!
  • Sonho interrompido? Não! Sonho adiado!
  • Não importa que você perca as batalhas o que importa é como você cura suas feridas de guerra.
  • 5 dicas para otimizar os seus resultados.
  • O poder da resiliência  em 7 encontros!
  •  Torne-se mais eficiente e resiliente em 10 aulas.
  •  Trago sua resiliência de volta em 3 dias!!! brincadeirinha!
 As estratégias para implantação e divulgação do valor da resiliência no mundo corporativo, como capacidade desenvolvida pelo trabalhador para suportar as pressões laborais, me reportam ao conceito de  intelectuais  orgânicos de Antonio Gramsci. Para o autor, o conhecimento é luta política que se trava na superestrutura de um determinado bloco histórico. Refere-se à hegemonia na esfera das mentalidades. Está para além da ação, por isso envolve a conquista de um novo nível de cultura. Trata-se da descoberta de coisas que não se conhecia e o esforço de desvendar, por dentro, a concepção de mundo de um determinado grupo social, de uma dada sociedade.
Os intelectuais orgânicos, na análise gramsciana, são diretamente ligados a classe ou empresas, tal cooptação estabelece nova forma de pensar e organizar interesses, conquistar mais poder para obter mais controle. Assim, Gramsci afirma sobre o intelectual orgânico: “o empresário capitalista cria junto de si o técnico industrial, o especialista em economia política, os organizadores de uma nova cultura, de um novo sistema legal etc. Esses estão ativamente envolvidos na sociedade, isto é, lutam constantemente para mudar mentalidades e expandir mercados.
Seria esse o admirável mundo novo da resiliência? Quanto mais resiliente for o trabalhador, mais hegemônico torna-se o sistema produtivo? Essa lógica me faz lembrar o trabalhador/trabalhadora como se estivesse nas Olimpíadas do Faustão - A Ponte do Rio que Cai, quem lembra? Para vencer a prova os participantes tinham que completar o percurso sem cair. A tarefa consistia em atravessar a ponte correndo, com chuva, piso escorregadio e levando bolada. Caso desequilibrasse, o participante deveria levantar-se sem cair da ponte ( para não ser desclassificado) e novamente de pé começar a correr e  tome bolada!  Nesta referência lúdica e louca entre o mercado de trabalho (a produtividade e o trabalhador) e o desafio da ponte do rio que cai... pergunto: Quem de fato cai? É o rio que cai? Cai a ponte ou quem está em cima da ponte? Para concluir uso essa analogia para lembrar que o dialeto corporativo está aí!  A resiliência também! Defendida, divulgada e glamorizada para que os trabalhadores  atravessem a ponte - TODOS OS DIAS!!!! Apesar do piso escorregadio, da chuva e das boladas porque o rio e a ponte nunca cairão.
Realmente, a IDEIA pode ser uma arma letal!

REFERÊNCIAS 
ANTUNES, Ricardo. A dialética do trabalho: escritos de Marx e Engels (org).  São Paulo: Expressão Popular, 2004.
__________. ALVES, Giovanni. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educ. Soc., Campinas, vol. 25, n. 87, p. 335-351, maio/ago. 2004 335 Disponível em http://www.cedes.unicamp.br . Acesso em: 18 fev 2012
__________. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2ª edição – São Paulo : Boitempo, 2009 ( mundo do Trabalho).
__________ O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. Ed. - São Paulo : Boitempo, 2018. 
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira 2004

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

PRO DIA NASCER FELIZ...


Sou da geração do concurso público. Na minha vida fiz diversos deles, passei em alguns, outros fui reprovada e tive vontade de fazer muitos outros. Meus amigos, colegas, primos e vizinhos também. Fazia parte do rito de passagem após a conclusão do antigo segundo grau, durante a faculdade ou após a formatura. Toda semana, quarta feira se não me engano, era certo passar na banca comprar o Jornal dos Esportes, saindo o edital, estava dada a largada - inscrição, apostila, estudo dirigido, aulão,simulados, prova e resultado. Passou? Não foi dessa vez! Fiquei lá atrás!Vou tentar outro... Vai abrir CEF, Tem Correios também! A Vida  seguia.

Havia uma expectativa de acesso em igualdade de condições para todos nós. Éramos jovens, diplomados cheios de sonhos e projetos avivados semanalmente pela coluna de concursos do jornalzinho rosa. Não consigo descrever a euforia, a emoção, a taquicardia no momento da conferência da lista de classificados do Diário Oficial do Estado ou da União e a decepção também. Interessante que nesta empreitada os jovens tomavam para si toda a responsabilidade do êxito, o resultado dependia única e exclusivamente do empenho e sorte do candidato, a tal meritocracia. Nessa lógica cartesiana, não havia espaço para considerar a estrutura desigual de formação, as lacunas epistemológicas da educação básica, a pressão emocional, a capacidade de reagir ao estresse, o medo, a resistência, a falta de tempo e outros obstáculos que qualquer concurso traduz. Desta forma, o mérito e o fracasso eram sempre individuais e não estruturais. Vivi tudo isso.

Essa geração, da qual fiz parte, investiu seu conhecimento, potencialidades e tempo em prol da aprovação em concurso. Ser um Servidor Público era motivo de orgulho, era assegurar o sustento talvez  na  única forma de inserção e ascensão do profissional “baixo clero” na classe média. Não sei assegurar como, mas algo se perdeu neste caminho entre a primavera de 1989, ano que da minha convocação na secretaria de saúde do estado, e o inverno bolsonarista de 2019. Dormimos no século XX e despertamos no século XXI, com saculejos e gritos de neoliberais de verde e amarelo ardidos em ódio contra o funcionalismo público. Acordamos já condenados, após julgamento sumário sob acusação de falência da máquina pública, baixa qualidade dos serviços, privilégios, super salários e o astronômico rombo da Previdência. 

Como as criaturas desprezadas no Inferno de Dante, as razões para  a depauperação e futura extinção do servidor público baseiam-se na baixa produtividade do serviço prestado e o desgaste financeiro da máquina pública em sustentá-lo, o que torna essa relação deficitária. Esse é o consenso nos noticiários, jornais, entrevistas, discursos políticos, no ônibus, no elevador – afinal, somos todos coaches financeiros!!! No entanto, para além  dessa alienação midiática, afirmo que qualquer um de nós  conhece pelo menos uma meia dúzia de servidores públicos mal remunerados, honestos, com vida simples, endividados que cumprem com suas obrigações laborais assiduamente. Se conhecemos pelo menos meia dúzia de servidores com baixos salários, responsáveis e éticos,  onde estão os marajás com seus super salários? Em Brasília? Nos altos escalões dos ministérios? Nos gabinetes? O peso da folha de pagamento não se justifica pelo salário da massa de policiais, professores, enfermeiros, médicos, administrativos dos municípios, estados e da União. Sim, os coaches financeiros do Facebook esquecem que o serviço público atua desde a década de 90 numa lógica neoliberal, pautada na flexibilização e precarização do trabalho, logo  o entrave da máquina estatal envolve os salários dos gestores, as gratificações da alta administração, as licitações fraudulentas, as privatizações e terceirizações de serviços, o favorecimento político, os projetos eleitoreiros, as campanhas publicitárias, que permanecerão  apesar da extinção do funcionalismo.

Fico imaginando o trabalho dos historiadores, sociólogos, jornalistas do Séc. XXII (isso mesmo, pesquisadores de alguma Universidade Cósmica no ano de 2145) tentando compreender o fenômeno de desmantelamento do Serviço Público no Brasil no século XXI. Vão ter muito trabalho... pilhas de Folhas Dirigidas,  editais, cursinhos on-line,  entrevistas, greves, licitações, denúncias do Fantástico, da Revista Veja etc.  Provavelmente essas narrativas históricas serão submetidas às pesquisas, análises, interpretações ou alguma forma de Inteligência Artificial, ou mobilidade no espaço-tempo... Sei Lá! Só espero que os teóricos do século XXII avaliem o contexto histórico, dialoguem com as fontes e outros campos do saber e problematizem os fatos para que compreendam a realidade do mundo do trabalho  na sua própria contemporaneidade.   Nesse sentido, amo saber que historia é a trajetória (humana) do homem no tempo. Um terreno escorregadio e cheio de imprecisão onde as temporalidades conectam passado e  futuro. 


  Para se ter uma ideia, em 1755 um grande terremoto devastou Lisboa. Numa manhã a cidade ruiu com um terremoto de 9,0 graus na escala Richter, seguido de um enorme tsunami e incêndio que durou dias totalizando mais de 50 mil mortos. Esse catastrófico desastre mudou o imaginário de um povo, vieram as reformas pombalinas em Lisboa, houve ascensão do iluminismo com a crítica da razão pelo filósofo Voltaire a despeito da vontade absoluta de Deus, Rousseau confirmou sua teoria do Contrato social e Kant buscou respostas do evento  nos fenômenos da natureza.  O desastre, considerado o maior de Portugal, inaugurou estudos sobre a sismologia na Europa, e como não podia deixar de ser, as contas da reconstrução da cidade chegaram nas colônias portuguesas de Além-Mar. No Vice Reino do Brasil houve  a expulsão dos Jesuítas da colônia e da Corte e aumento dos  impostos nas Minas Gerais (Brasil) medida que   gerou  revolta dos mineiros culminando posteriormente na inconfidência mineira. Desta forma, o tempo histórico fluiu pelas imprevisibilidades, humanas, ambientais ou cósmicas, do desastre natural a revoltas coloniais em outro continente.  

Pergunto então, qual a relação entre a população de Lisboa do séc. XVIII e o servidor público do Brasil do século XXI? Estamos expostos às vicissitudes da história, um no passado e outro no Tempo Presente. Houve um terremoto, um tsunami e um incêndio em Lisboa, a cidade foi destruída pela força da natureza. Hoje um terremoto político reformista tenta devastar o funcionalismo público no Brasil, em especial no Rio de janeiro. A história dirá se haverá reconstrução. Desejo, como Servidora Pública, que no futuro quando os estudantes do século XXII abrirem seus “nanochips” de História no capítulo sobre  A Ditadura da Nova Política no Brasil  possam compreender as relações de trabalho vigente em seu tempo a partir dessa devastação (assim como houve em Lisboa pós- terremoto). Espero que o novo modelo de trabalho permita a subsistência e felicidade do trabalhador, torço ainda que as atuais e "promissoras" relações de trabalho na égide neoliberal, precarização, uberização, pejotização, flexibilização, zero Hour contract dentre outros,  se houver no futuro, não exproprie tanto o trabalhador, não humilhe tanto, não leve ao suicídio, nem adoeça  os trabalhadores e trabalhadoras  do Brasil. 

Por fim, faço votos que exista vida e sentido  para além do trabalho. A História terá papel relevante na compreensão desse fenômeno, nunca no seu julgamento, este cabe aos juízes, não aos historiadores. O saudoso Hobsbawm, em um dos seus últimos livros, afirmou:
“A melhor história é escrita por aqueles que perderam algo. Os vencedores pensam que a história terminou bem porque eles estavam certos, ao passo que os perdedores perguntam por que tudo foi tão diferente, e esta é uma questão muito mais relevante.” 

Concordo com  Hobsbawme e escolho a história relevante. 

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

NÃO EXISTE AMOR EM SP


Amo São Paulo!  Durante muito tempo resisti em conhecer a maior cidade da América Latina. Achava aglomerada demais, indiferente demais, caótica demais!  Todos têm pressa, ternos, tailleurs, buzinas, correria insana, o coração taquiarrítmico do Brasil não pode parar, nunca!. Puro preconceito porque na verdade falava de algo que não conhecia. Hoje a megalópole me conquistou. Os arranha-céus espelhados, a multicultural Avenida Paulista, a lindeza de “As Meninas” do MASP, a subida da Consolação que sempre  me lembra a  São Silvestre,  o glamour da Oscar Freire, sem falar da gastronomia... Como não amar os restaurantes, cantinas, feiras, mercados?  Um festival de delícias! São Paulo é rua, praça, manifestos, parques, autódromo, bicicletas e patins, São Paulo é botequim!


Avenida Paulista SP
Segundo o pesquisador Assis Ângelo, São Paulo é a cidade mais cantada do Brasil. Pensou que fosse o Rio de Janeiro? Não! São mais de 3000 músicas que cantam os seus encantos. Que mistério há nesse lugar que desperte tenta inspiração? Talvez a inspiração brote do estranhamento, como  Caetano tão bem explica em Sampa: É que quando eu cheguei por aqui eu nada    entendi,  da dura poesia concreta de tuas esquinas, da deselegância discreta de tuas meninas  (...) E quem vem do outro sonho feliz da cidade  aprende depressa a chamar-te de realidade. Porque és o avesso, do avesso, do avesso, do avesso”.  Pode ser inspiração do  desconforto ambíguo como declara  o rapper Criolo: Não existe amor em SP. Um labirinto místico onde os grafites gritam. Não dá pra descrever numa linda frase de um postal tão doce. São Paulo é um buquê. Buquê são flores mortas num lindo arranjo feito pra você. Não existe amor em SP!   Os Racionais  Mc’s completam, (...) é estresse concentrado, um coração ferido por metro quadrado”.  

Com saudade da filha e do agito da cidade retornei mês passado a São Paulo, dessa vez levei minha mãe de 82 anos  para conhecer e curtir um pouco de Sampa. No nosso giro pela cidade circulamos com  motoristas de aplicativos do Maranhão, de Pernambuco, do Rio de Janeiro, do Paraná e até  gringo. Nos  restaurantes, museus e lojas  nos atenderam jovens simpáticos do Espírito Santo, do Pará, de Minas Gerais e de tantos outros Brasis. Numa loja na Oscar Freire minha mãe conversando com um vendedor do Piauí indagou - Uéee! Cadê os paulistas (paulistanos) dessa cidade? - Estão todos no Itaim! Respondeu o jovem com sagacidade. Em sua ingenuidade minha mãe não entendeu a lógica do avesso, do avesso, do avesso!

Interessante constatar quantas cidades cabem dentro de uma cidade. A cidade dos grandes conglomerados financeiros, das fábricas, dos restaurantes, do turismo, dos bairros de imigração, do submundo, dos retirantes, dos alagados, tem uma cidade para cada um. .  A desigual geografia cerca os contrastes dos jovens do Itaim  por muros físicos ou imaginários, mas também agrega os outsiders por pontes, viadutos e esquinas.  A dinâmica do espaço social em que ocorrem movimentos de aproximação e afastamento, onde se produzem e reelaboram conhecimentos, valores e significados. Um terreno cultural caracterizado por vários graus de acomodação, contestação e resistência, uma pluralidade de linguagens e objetivos conflitantes.

      Na realidade deste caleidoscópio urbano descubro a existência da Esquina dos Desempregados em São Paulo - essa esquina fica entre  as ruas Barão de Itapetininga  e Dom José de Barros no Centro. Trata-se de um calçadão numa região repleta de agências de empregos temporários, subempregos e pequenos bicos. Diariamente operários da construção civil se dirigem para a região com documentos e uniformes na esperança de conseguir uma obra, uma ocupação, um trampo ou um bico.  Essa prática existe desde a década de 70, anteriormente situada no Brás e na Luz. Por conta do crescente desemprego, a freqüência de agenciadores torna-se cada vez mais escassa, quando aparece algum  circula, conversa com um e outro, verifica documentos e pechincha o valor do serviço ou contrato temporário. Na inexistência de vaga ou quando dispensados, o dia está perdido, eles conversam, relembram épocas melhores, tomam uma cachaça e voltam para casa. A escassez de vagas aumenta o movimento da esquina, a exploração da força de trabalho, a miséria e o consumo de álcool e diminui a esperança dos operários principalmente os mais idosos e desqualificados.

         Esse fenômeno me faz recordar das cenas sobre a Grande Depressão de 1929, quando a massa de desempregados (homens, mulheres e crianças) se dirigia para as portas das fábricas e indústrias sujos, sofridos e famintos e aos gritos se candidatavam para vagas temporárias ou bicos. Triste constatar que quase um século depois o trabalhador continua no mundo das incertezas. No que tange as relações do trabalho no Brasil estamos sob a ditadura (legitimada pelo voto) não só política, mas das reformas neoliberais, das tecnologias, da lógica do não-emprego, do mercado, da uberização dos serviços, da flexibilização e da empregabilidade. “a galinha dos ovos de ouro” para a lucratividade e hegemonia do capital.  

           Em breve voltarei a observar a cidade, mas da próxima vez do ponto de vista dos grafites. Não os grafites de grife, criados a partir da estética dos contratos para enfeitar os muros da cidade, mas pelos grafites descritos por Criolo.  Aqueles que gritam, pedem socorro, desbotam a cor, denunciam a dor da cidade e por tanto incomodar foram calados. Realmente Não Existe Amor em SP!
Não existe amor na Esquina dos Desempregados de SP nem na esquina de qualquer outro lugar!



Créditos:
Não existe amor em SP - Criolo
Sampa – Caetano Velloso
Vida Loka (2ª parte) - Racionais Mc’s

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

6 ANOS DEPOIS... PREPARE SEU CORAÇÃO!!!

Assim como andar de bicicleta, nadar, dirigir ou fazer um bolo, escrever também é uma atividade que exige exercício, esforço e prática diária. Entretanto, por puro desânimo deixei o blog hibernando por seis longos invernos. Hoje, em recuperação de uma forte gripe, meio por encanto, volto a escrever. Confesso que a hora da largada sempre causa tensão, um medo de faltar fôlego de ideias, de desequilibrar na objetividade, de diminuir o ritmo de criatividade ou de "solar" o bolo no final e tornar tudo sem sabor e muito enfadonho. Pois bem, decido correr o risco... 

Pra começar preciso relembrar os temas já debatidos neste blog, leio, reflito e penso: nossaaaaaaa!!! Como sou truculenta na escrita!!!! O fato é que  as relações de trabalho no front da precarização e precariedade do trabalhador descarregam jatos de adrenalina em mim. É um exercício desgastante! Deus poderia ter me dado talento para escrever sobre maquiagem, moda, culinária, cultivo de orquídeas, religião, viagem (que tanto amo), mas não! Escrevo sobre aquilo que me causa indignação e incômodo - as transformações nas relações de trabalho que procuro conhecer e principalmente do meu lugar de fala - o Sistema Único de Saúde - o SUS.  Dessa forma, o Desprecariza-ação tem algo de trincheira, denúncia e manifesto.

Interessante como o tema me salta aos olhos. Entro no Uber e o motorista é um engenheiro desempregado há cinco anos, vou à farmácia e a operadora do caixa tem no crachá função de farmacêutica, a vendedora da loja é publicitária, a garçonete fez Direito e quer fazer concurso, na audiência conheço a advogada da empresa uma prestadora de serviço “audiencista” free lancer, a professora percorre três colégios recebendo por autonomia, o estagiário de Direito atende balcão e organiza armário no Tribunal de Justiça, a enfermeira tem carga horária excedente por causa do cafezinho. Esses tristes exemplos me fazem indagar: qual  o papel das universidades na formação de profissionais para o desemprego    (ou subemprego)?  

Não consigo entender a espetacularização do tal empreendedorismo ou capitalismo flexível que vez por outra assistimos no Globo Repórter. Afinal, você conhece algum ambulante que vendendo água na praia ganhou seu primeiro milhão e hoje tem uma distribuidora de bebidas? Conhece alguma faxineira que economizou a ponto de tornar-se proprietária de um restaurante? Ouviu falar de algum vendedor de laranja da beira da estrada que com muito trabalho virou um empresário bem sucedido?  Alguém conhece?  Eu, não! Só no Globo Repórter e na Igreja Universal. Ao contrário, conheço faxineiras e domésticas que trabalharam até quando suportaram e sua descendência, sem a necessária formação educacional, perpetua a mesma atividade em residências, mercados, prédios, portarias e empresas de limpeza. Seria maldição hereditária? Não. Trata-se da invisibilidade dos menos favorecidos nas prioridades dos governantes de ocasião. 

O Professor Ricardo Antunes afirma numa entrevista que  “o proletariado não acabou, ao contrário do que muitos previram e desejaram. Ele se transformou”. Dessa transformação o que nos tornamos, afinal? Colaboradores!!! A glamorização dos colaboradores.  Sim, o colaborador não reclama, não reivindica, não pede aumento. Ele é imprescindível para o crescimento da empresa, é quase um sócio! Mas, quando a lucratividade da empresa cai frente à crise, listas de colaboradores são demitidos e os demais têm que se desdobrar para substituí-los.


Nesses seis anos, muita coisa mudou! No Sistema Único de Saúde – SUS, o servidor público, concursado, estatutário, empossado e lotado num determinado setor chega ao fim, substituído por uma babel de “colaboradores” terceirizados, contratados,  comissionados, estagiários, autônomos, celetistas, voluntários etc. Como trilhar uma lógica assistencial  de cuidado na perspectiva da humanização,  se o trabalhador, o profissional, o prestador de serviço exerce sua função em permanente desumanização, tratado como um elemento descartável sob a espada da demissão? Certa vez escutei uma gestora afirmar que a crise favorece a empresa a obter o melhor profissional pelo menor preço (me lembrei das promoções de supermercado Leve3 /Pague 2).  

 Chego ao fim, perguntando o que fazer?  Resistir, resistir sempre! Podemos usar as redes sociais para escrever, criar, refletir, incomodar, desassossegar, revolucionar, até a exaustão, essa lógica crescente da servidão nas relações de trabalho. Proponho começar pela des/glamorização  do termo colaborador   (co-labor significa  trabalhar em igualdade de condições). O que somos, afinal? Operários, funcionários, servidores, proletários, trabalhadores... qualquer nome que  nos lembre que temos  um patrão público ou privado que compra  nossa  força de trabalho pelo menor preço a serviço do lucro e do capital.  Para hoje deixo a poesia de Geraldo Vandré cantada por Jair Rodrigues em 1966:

Prepare seu coração, pras coisas que eu vou contar, eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão. Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar.
Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar. 
E a morte, o destino, tudo, 
e a morte e o destino tudo estava fora do lugar.
 E eu vivo pra consertar.


Até breve!