segunda-feira, 15 de junho de 2020

ESCRITOS DO ISOLAMENTO PARTE 4

         A Silenciosa highway da pandemia


 Este blog - Desprecariza-ação - foi criado em 2013, como produto da minha dissertação de Mestrado, cujo objeto de pesquisa norteia o mundo do trabalho e o crescimento da precarização nas relações de trabalho a partir da década de 80, principalmente no setor saúde. Sem qualquer rigor metodológico, toda a produção textual do blog visa apresentar reflexões e críticas numa estética pouco ortodoxa, ora utilizando ferramentas teóricas e formais, ora utilizando músicas, filmes, piadas, sarcasmo e outros formatos de manifesto e desabafo. Os Escritos do Isolamento, textos produzidos durante a pandemia do coronavírus, seguem essa mesma premissa libertária, sendo que essa parte 4 que acabo de escrever tem algo de especial; são impressões que emanam individualidade e subjetividade da narrativa em 1ª pessoa, assumindo o protagonismo da minha própria história de luta, como mulher, profissional de saúde, servidora pública, historiadora e antifascista.   Boa leitura!



Hoje acordei cedo. Tempo nublado, um vento frio de maio... a repórter do tempo prometeu um dia de sol, mas ele não veio. Pensando bem, não há motivo para o astro brilhar!


O dia está nublado, tem pandemia há mais de setenta dias, mas tem trabalho também!  Nem todas as atividades profissionais possibilitam o isolamento social. No meu caso, como enfermeira de Unidade Básica de Saúde (UBS) em plena campanha de vacinação contra Influenza seria correto dizer que praticamos o “ajuntamento social”.   

A UBS em que trabalho situa-se no Centro de Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro. Diferente das outras campanhas, este ano, a vacinação foi deslocada para um posto itinerante no Teatro Municipal João Caetano. A estratégia visava manter o distanciamento necessário dos idosos e demais grupos nas filas e também manter o fluxo de entrada e saída sem muito contato entre os usuários.

Com um extenso currículo em vacinação, confesso que já participei de campanha em creches, escolas, shopping, centro cultural, centro espírita, igrejas, museu e até carceragem, mas em teatro foi a primeira vez. Considerado um dos cartões postais da cidade, o espaço elegante de estilo neoclássico possui uma movimentada agenda artística e abriga desde 1827 a história cultural da cidade. Não saberia contar quantos espetáculos maravilhosos já assiste neste lugar. No silêncio da ampla recepção de tábua corrida com cheiro de madeira nobre traço essas linhas no intervalo do almoço.

Como descrito acima o teatro situa-se no centro da cidade, em frente ao shopping mais freqüentado pela sociedade niteroiense. O dinâmico vai e vem de bolsas, sacolas, encontros, cineminha, táxis, cafezinho, almoço executivo etc. foi substituído por tapumes e silêncio!  Pela porta de vidro do teatro observo a circulação de pessoas na rua, rostos cobertos por máscaras, máscaras de todas as cores, absortas em seus devaneios. Não ouço vozes, só passos! De repente um morador de rua passa gritando palavras sem sentido, ninguém se importa!

A cena possui uma dinâmica cenográfica, quase uma realidade simulada. Lembro do filme que assisti há muito tempo chamado Show de Truman (1998). O filme narra a vida de Truman, um jovem que desde o nascimento tem sua vida observada num reality show assistido por milhares de pessoas. Truman possui uma vida simples e pacata, sem imaginar o mundo do espetáculo que o cerca. Nada na vida de Truman é real, esposa, mãe, amigos, vizinhos, são todos atores com diálogos ensaiados. O dia, a noite, o sol, a chuva tudo faz parte da cenografia, até propagandas (sim, tem merchandising no cotidiano dele) e pior, ele é o único que desconhece a realidade.

Por vezes acho que o coronavírus infectou nossa realidade, como a de Truman. Quem sabe esse não seria um reality? Tantos atores, cenas, equipamentos, manifestações, lives, publicidade, aplausos, cruzes, covas etc. Nesse aspecto, o teatro seria de fato o lugar mais apropriado para estarmos atuando, como personagens do show nosso figurino envolve máscara, capote, touca, luvas, óculos, face shield e toda a simbologia apavorante da contaminação.

Envolta no desassossego deste dia nublado sinto necessidade de refletir sobre o papel do profissional de saúde diante da pandemia. Apesar de tantos dias após a notificação do primeiro caso, os conflitos internos permanecem - o medo e insegurança pela atividade de risco X a responsabilidade social de intervir e salvar vidas. Para além dos heróis e heroínas das propagandas existem seres humanos enfrentando, talvez, o pior desafio de suas vidas (ir e vir, aprender e fazer, errar e refazer, cuidar de si e do outro) tudo em tempo real.  

Pela TV, como no reality show, tudo acontece nas Unidades de Terapia Intensiva, nos Hospitais de campanha, no front do combate, mas, não é bem assim. Na realidade as práticas em saúde se distribuem de acordo com o grau de complexidade da situação. Sendo assim, a Unidade Básica de Saúde (UBS) e as unidades de Estratégia de Saúde da Família (ESF) são a porta de entrada do Sistema Único de Saúde. A UBS desempenha um papel central na garantia de acesso à população, cuja finalidade visa promover, proteger e prevenir agravos, disponibilizar exames, diagnósticos, tratamento, reabilitação, redução de danos e manutenção da saúde. Durante a pandemia, novas ações foram acrescidas ao serviço, como teste rápido, coleta de swabs, notificações, atendimentos, exames e encaminhamentos.

Como o próprio nome já define, o caráter básico das UBS não permite atividades de média ou alta complexidade. As unidades possuem entraves estruturais no fluxo de pacientes, em corredores estreitos e movimentados, falta de ambulâncias, rede de oxigênio, salas com pouca ventilação, elevadores, e outras excentricidades, como a UBS em que trabalho, situada em prédio comercial no 3º e 4º andares. Dá para imaginar pacientes com covid-19, subindo e descendo nos elevadores de um prédio comercial?

Além disso, a pandemia reduziu de forma significativa o nosso quadro de funcionários, houve afastamento por idade (superior a 60 anos), por comorbidade e também pelo contágio da doença. Cabe esclarecer que o número significativo de servidores acima de 60 anos no serviço público justifica-se pelos salários achatados, sem política de reajuste há anos. Essa medida de desvalorização acaba mantendo o servidor na ativa, na expectativa de obter algum benefício ou “penduricalho” que possa tornar a parca aposentadoria mais digna. O contingente de funcionários mais jovens portadores de doenças crônicas e debilitantes segue a mesma lógica perversa

Do quadro de funcionários já reduzido praticamente a metade, hoje contabilizamos cerca de vinte profissionais contaminados pelo coronavírus.  Não sei explicar o motivo de tamanha contaminação, aliás, acho que sei. A pandemia teve início no verão, mês de férias, carnaval, eventos e , inclusive para o nível central (só pra lembrar o Titanic afundou à noite). Apesar do verão, outros discursos e ações facilitaram o contágio na UBS, houve banalização sobre o avanço da epidemia, irregularidade no fornecimento de EPI’s, fluidez na biossegurança dos funcionários, exposição em transportes públicos lotados, atraso na sanitização da unidade, fora os devaneios sobre a gripezinha, a cloroquina e vida x economia.

 Embora a pandemia tenha iniciado na China, o drama vivido pela Itália e pela Espanha deveria ser pedagógico, mas não foi! O que estava por vir foi ignorado em todas as instâncias do território nacional. Aqui em Niterói não foi exceção, a criação do gabinete de crise foi postergada pela alta administração.  Interessante que a retórica em saúde apela tanto para educação, promoção e prevenção de agravos, mas quando a antecipação das ações (capacitação, treinamentos, protocolos, fluxogramas, aquisição de materiais, pactuação público/privada) se tornou imprescindível para diminuir o impacto da epidemia houve demora, a gestão pública perdeu a oportunidade de usar o tempo a seu favor, a favor de todos. 

Dentre os atropelos diários, a comunicação tem sido a área mais afetada. A comunicação em saúde é uma das bases essenciais ao exercício pleno da cidadania e do direito à saúde estabelecidos na legislação do SUS. A comunicação abrange um conjunto de ferramentas de transmissão de conteúdos, dados e práticas a serviço da saúde, ferramenta de publicidade e transparência aos atos administrativos. Comunicar e informar gera produção de sentido em espaços de lutas e negociações. A comunicação e a informação devem ser pactuadas visando adesão às políticas de enfrentamento pelo coletivo a fim de aperfeiçoar o sistema público de saúde e assegurar a participação dos cidadãos na construção de políticas públicas exitosas.

No decorrer desses 70 e muitos dias foi possível constatar uma verdadeira Babel de informações, entre medidas sanitárias, informes aos cidadãos, flexibilização da vida social, retorno da mobilidade urbana e da economia da cidade. No caso específico da comunicação para as práticas em saúde, a falta de clareza tem sido um obstáculo difícil de ultrapassar.  As tomadas de decisões são ditas e desditas, whatsapp pra cá, áudio pra lá, e-mails, dados atrasados, atos e contra-atos e até fake news, resultando em estresse, fadiga, desconfiança, desperdício material, equívocos, conflitos e retrabalho! A escassa força de trabalho se desgastando no retrabalho.   

Por mais contraditório que possa parecer quanto mais vazia for a comunicação mais envolvida em embrolhos e arrogância. Essa atitude torna-se tão contagiante e tão nociva a ponto de confundir os cidadãos, de deslegitimar profissionais, intimidar gestores e diretores com expertise. Afirmo, a arte da guerra não dá conta de uma pandemia, o enfrentamento exige racionalidade sanitária, como já vivenciada em outras epidemias como dengue, Zika, H1N1, sarampo etc. Penso que a evolução da pandemia no Brasil é diretamente proporcional à incapacidade dos agentes políticos em estabelecer um diálogo conciliatório e humanitário. Diálogo para “simplesmente” salvar vidas!!!

A comunicação eficaz é direito de todos os cidadãos, em específico os profissionais de saúde, que estão à frente do combate. Não se trata de uma opção ou benevolência dos gestores, mas transparência dos atos administrativos.  Os pronunciamentos diários do prefeito em formato de lives, por mais otimistas que pareçam, não comunicam de fato. Comunicar implica na ação de participar junto.  A comunicação excede a autopromoção e o ufanismo, a comunicação eficaz deve ser guiada pela troca e não pelo resultado. Pode haver êxito em anunciar à sociedade ações que serão executadas por servidores (profissionais de saúde) totalmente desinformados?

Quando a comunicação é negligenciada ou mitigada como valor fundamental das práticas em saúde, qual o dano para o cidadão e para a sociedade? Vidas perdidas! O desperdício de recursos humanos e materiais, o que acarreta? Perda de vidas!  A fadiga dos trabalhadores e falta de protocolos em que resulta? Perda de Vidas!  Ordens confusas, dados controversos, o que causa? Perda de vidas!

Sairemos dessa pandemia com muitas indagações, pouco aprendizado e muitos óbitos.
Em respeito aos cidadãos atônitos, machucados, sofridos e enlutados vistos na rua do teatro encerro esse escrito deixando um trecho da canção Infinita highway (1980) 
dos  Engenheiros do Hawaíi:


"Estamos sós e nenhum de nós
Sabe onde vai chegar
Estamos vivos sem motivos
Que motivos temos pra estar?
Atrás de palavras escondidas
Nas entrelinhas do horizonte dessa highway
Silenciosa highway".





quarta-feira, 10 de junho de 2020

ESCRITOS DO ISOLAMENTO - PARTE 3



            A carne mais barata da pandemia

Projetos buscam facilitar pagamento de auxílio emergencial durante ...
Filas na Caixa Econômica Federal - RJ
Diferente de outros países, o coronavírus chegou por aqui de avião, passaporte carimbado, amigos e festas regadas a Chandon. Sim, o vírus “pegou carona” nas vias aéreas de empresários, influenciadores, artistas, turistas, políticos e desembarcou aqui. A divulgação dos primeiros casos pela rede privada de saúde, as internações, e inclusive óbitos, nos fez pensar que a pandemia seguiria sua escalada no Brasil de forma simétrica - ledo engano!!! A pandemia rapidamente bateu à porta da vulnerabilidade social e entrou impiedosamente nas periferias, nos aglomerados urbanos, no campesinato rural, nas instituições penais etc. Parafraseando a militante Elza Soares, a pandemia chegou à carne mais barata do mercado!

São quase 38.000 óbitos. No ranking do mapeamento temos São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Amazonas Pernambuco e Pará. São regiões metropolitanas, cidades do entorno industrial, pequenos municípios, inclusive vilarejos, ilhas e aldeias (a população indígena não foi poupada). Um panorama que está levando o Sistema Único de Saúde (SUS) ao colapso estrutural e assistencial.

Não podemos deixar de destacar que essa é uma tragédia anunciada há muito tempo. Afinal, o SUS sempre foi “sangrado” diante de endemias como as arboviroses, (dengue, zika, chikungunya e febre amarela) nas Síndromes Respiratórias Agudas Graves, como influenza, o H1N1, e recentemente com o sarampo.  A diferença em relação ao novo Coronavírus está no avanço e no desconhecimento da doença, na falta de estrutura hospitalar para atender ao paciente crítico, no alto índice de contaminação dos trabalhadores da saúde e na escassez de profissionais preparados para atuar em unidades de terapia intensiva.

O título “a carne mais barata da epidemia (e do mercado também)” procura refletir sobre a penalização dos desiguais e as políticas públicas de enfrentamento à pandemia, quase sempre impregnadas de oportunismo, acabam reforçando as desigualdades sem qualquer alteridade com os outsiders, negros, pobres, mulheres, desempregados, indígenas, analfabetos, nordestinos, LGBTQI+, desalentados, marginalizados e um incontável número de invisíveis.

Nada pode justificar as enormes filas nas agências da Caixa para aquisição de auxílio emergencial, o desespero dos sem-documentos na Receita Federal, o transporte lotado, o serviço "essencial" dos empregados domésticos, os hospitais lotados, pacientes agonizando sem vagas em UTI’s, falta de testagem, confrontos policiais em comunidades, população indígena desassistida, demissões... O caos social sendo utilizado pelo Governo Federal para alimentar seu populismo e justificar medidas autoritárias.  
Revista Lancet 

Na histórica lista da carne mais barata incorporam-se, nesse momento de pandemia, os profissionais de saúde do SUS. Relacionar a vulnerabilidade social que tantos brasileiros amargam durante toda a vida com a atual situação dos trabalhadores do SUS pode ser um exagero, mas quando analisamos as diversas categorias que abrangem o setor saúde observamos a sombra da invisibilidade e da vulnerabilidade em questão. Aliás, quem conhece a luta e a realidade desses trabalhadores sabe que não há nenhum glamour no jaleco branco. A pandemia chegou para desvelar e publicizar as condições de informalidade e desregulamentação de muitos trabalhadores do SUS.

Não se trata de uma realidade excepcional nem recente. Desde 1980, o crescimento do trabalho precário ou de precariados no Brasil tem sido diagnosticado, estudado e denunciado por pesquisadores sérios  numa extensa produção bibliográfica. Inclusive a criação desse blog em 2013 em virtude da dissertação de Mestrado com o objetivo de divulgar artigos relacionados à formação profissional em saúde e a precarização do Trabalho no SUS.  

Embora já bem depauperado, o SUS possui pouco mais de três décadas; o acesso universal à saúde como direito foi estabelecido pela Constituição Federal de 1988. Talvez seja esse o direito mais revolucionário e audacioso garantido pela emblemática constituição (aliás, garantir saúde para todos sempre incomodou muitos setores). Desde sua criação em 1988,o SUS vem sofrendo anos de cortes orçamentários, desvios de verbas, pedaladas e corrupções, até que a conta chegou! Assim também sua força de trabalho (servidores públicos federais, estaduais e municipais) foi se desidratando pelas políticas neoliberais, suspensão de concursos públicos, desvalorização salarial, redução de investimentos e tantos outros. Logo, as exonerações, aposentadorias, licenças e mortes, não produziram substituições equivalentes.

Para cuidar da saúde de mais de 210 milhões de brasileiros, sim todos nós utilizamos o SUS até quando compramos uma maquiagem, os entes governamentais recorreram a diversas mutações de trabalho de caráter flexível para substituir o servidor público. O trabalhador de saúde caiu no limbo da informalidade, da perda de direitos e garantias trabalhistas  como prestação de serviço por autonomia, contratos por tempo determinado, terceirizações, cooperativas, Organizações de Saúde etc.  

Essa miscelânea de relações de trabalho acarreta alta rotatividade, desvinculação pedagógica, discriminação, exclusão, desemprego, como também a sujeição, intimidação do trabalhador e o enfraquecimento sindical. São fatores impeditivos para a mobilização e resistência coletivas dos trabalhadores. Essas relações multifacetadas que envolvem a força de trabalho no SUS configuram a lógica destrutiva do capitalismo contemporâneo.   

A insolvência do Ministério da Saúde e o sucateamento do acesso à saúde, bem como esfacelamento de sua força de trabalho, não previa o enfrentamento de uma pandemia, óbvio! 32 anos depois, o Sistema Único de Saúde foi reivindicado por todos... Claro! As ações de combate ao coronavírus serão a única forma de sobrevivência da economia liberal no país – que destino!. Através dessa conjuntura nefasta, o drama vivenciado pelos trabalhadores da saúde invade os noticiários diariamente, risco de contaminação, adoecimento, óbitos, falta de equipamentos de proteção individual (EPI’s), salários atrasados, denúncias, manifestações, fraudes, contratos sem garantias, assédios, enfim, toda forma de violência contra o trabalhador.
Enfermeiros fazem ato no DF em favor do isolamento social ...
Manifestação no Palácio do Planalto - DF

A precarização do trabalhador na linha de frente da epidemia, inclusive estagiários, recém formados e voluntários, levou a inclusão dessa categoria como mais uma das carnes baratas abatidas durante a pandemia. Dentre elas, estão as mulheres. Mulheres de todas as cores, corpos, línguas, crenças, formações e sexualidades – corpos vulneráveis. São técnicas e auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas, farmacêuticas, técnicas de RX, atendentes, enfermeiras, médicas, nutricionistas, auxiliares de serviços gerais, copeiras, técnicas de laboratório, patologistas, assistentes sociais, psicólogas, cuidadoras, motoristas, vigilantes e tantas outras forças que se somam ao cuidado em saúde.

O artigo “A força de trabalho da saúde no Brasil: focalizando a feminização” aponta que o setor saúde tem forte vocação feminina em todo o mundo. No Brasil a ocorrência do fenômeno da feminização do setor saúde surge a partir de 1970.  Para as autoras, o contingente feminino tem se tornado francamente majoritário neste ramo da economia. Na década de 80 houve um crescimento de 302% na categoria médica e 344% na odontológica. A pesquisa também aponta para 95% da presença feminina entre os profissionais de enfermagem e 90,39% entre os nutricionistas (ENSP/Fiocruz - 2016). De acordo com os dados levantados pelas autoras em 2016, a pandemia do coronavírus tem na frente do combate rosto de mulher.  Rostos marcados, corpos agredidos por dentro e por fora, dor, cansaço, fadiga, medo, indignação, dúvidas, abandono, rostos que choram, não por fraqueza, mas por impotência. 
Hospital de campanha do Maracanã


O domínio da força de trabalho feminina no setor saúde levanta tantas questões a serem respondidas. Seria essa a razão das condições inseguras de trabalho? A precarização do SUS retroalimenta a exploração feminina? A imagem publicitária de heroínas impulsiona a mulher a renunciar sua biossegurança? Trabalho ou missão? A sociedade que aplaude é a mesma que bate? E o silêncio dos legisladores? Trabalhadoras de saúde morrendo de Covid -19 sem direitos trabalhistas, quem se importa? Plantonistas sem condições humanas básicas deitadas no chão de hospitais, não causam indignação? Cadê os direitos humanos? Ameaças, punições, cortes salariais... mulheres  trabalhadoras lançadas nas trincheiras do vírus!!!

Por mais que soe romântico, os agradecimentos, mensagens e aplausos não apagarão a história dessas mulheres que entraram nessa guerra laboral (não é viral) sem recrutamento, sem direitos, sem armas, sem nada!

REFERÊNCIAS:

Wermelinger, M; Machado, M. H; Oliveira, E. S.; Moyses, NM. N. A força de trabalho da saúde no Brasil: focalizando a feminização : ENSP/ Fiocruz, 2016.

terça-feira, 26 de maio de 2020

ESCRITOS DO ISOLAMENTO - PARTE 2


                                  
                            O rosto feminino na política  & as bruxas da noite 



O isolamento social continua... 62 dias se passaram! As janelas estão fechadas, as lives já são mais escassas, as entrevistas com os especialistas parecem repetitivas. Todas as boas práticas de sobrevivência já foram aplicadas, ginástica na sala, aniversários nas varandas, mensagens de autoajuda, aplausos na janela, leitura, meditação, filmes, séries, reprise de jogos, panelaços, muitos panelaços!


Os jornais mantêm duas frentes de informações, quase contraditórias entre si. A mais relevante refere-se à luta pela vida no enfoque epidemiológico da pandemia, informes sobre número de infectados, óbitos, a falta de equipamentos de proteção individual (EPI’s) e ventiladores, a escassez de profissionais de saúde, a dor das famílias, enfim, o caos logístico e sanitário resultado de sucessivos governos negligentes. Na outra frente de notícias temos o descaso pela vida com denúncias sobre fraudes, corrupção, compras indevidas, desvio de verbas para hospitais de campanha, barganhas políticas, cloroquina, rolezinho do mito, demissões de ministros, dentre tantas notícias que explicitam o caráter hediondo de muitos  políticos no Brasil.

Enquanto a pandemia avança na escalada de infectados e óbitos houve divulgação do vídeo dos horrores, a famosa reunião do Presidente da República, seus Ministros e Secretários no dia 22 de abril. Nada menos do que o Poder Executivo reunido para ofender, xingar, ameaçar e desrespeitar o povo brasileiro. Sim, o povo brasileiro! Só para lembrar: em 2018 tivemos eleições diretas com dois turnos, pleito legítimo com cerca de 57 milhões de votos. Não há dúvida sobre a marca da violência do bolsonarismo (ismo no sentido ideológico). Sem qualquer traço de elegância ou respeito, o diálogo (diálogo com muitas aspas) expressa  ódio de forma nua e crua. Sem disfarces, sem riso sardônico, nem versículos bíblicos, só ódio. Nesse clima de “nós contra todos” não seria justo gastarmos tempo e energia com as sandices de Bolsonaro... os seus eleitores que cuidem das hemorróidas dele (piada interna rsrs).

Para manter a sanidade, e bloquear a toxicidade dos escândalos de Brasilia, precisamos buscar alternativas positivas e desafiar o cérebro a sair do lugar comum. Essas boas práticas podem ser inspiradoras para você escrever, pintar, cozinhar, cantar, dançar, pensar e questionar o obscurantismo atual. Essa semana me nutri dos podcasts História FM, História Noturna. Ouvir podcast tem se tornado um hábito bem prazeroso e adaptável à realidade pandêmica atual, créditos e agradecimentos para o historiador Icles Rodrigues apresentador e "provocador" destes podcasts. Também teve livro ( sim!!!) da jornalista Svetlana Aleksiévitch chamado  A guerra não tem rosto de mulher. 


O livro A guerra não tem rosto de mulher trata do revisionismo sobre uma temática negligenciada pela historiografia de guerra, a presença de mulheres na guerra, no front de batalhas durante a Segunda Guerra Mundial. Exércitos de mulheres serviram nas forças armadas de quase todos os países compondo contingentes significativos de combatentes. “Nas tropas inglesas eram 225 mil; nas americanas, 450 mil; nas alemães, 500 mil; no exército soviético lutaram aproximadamente 1 milhão de mulheres” (p.08). Elas atuaram em várias especialidades militares como soldados de infantaria, tanquistas, pilotos, comandantes de pelotão, franco-atiradores, sapadores e tantas outras atividades que até então não possuíam gênero feminino. 


A autora Svetlana Aleksiévitch fez um exaustivo trabalho de campo, buscando ouvir e dar voz a mulheres esquecidas que mergulharam suas experiências, traumas e dores no silêncio da história. Sabemos que “silêncio também é história” e talvez seja essa história amordaçada e censurada a de maior relevância e profundidade. Em longas entrevistas a escritora procura trazer a narrativa feminina diante da mais nefasta das atividades humanas – a guerra! Para Svetlana, o ser humano é maior que a guerra e essa é a linha de condução do seu trabalho, expor as experiências vividas por essas mulheres guerreiras pela ótica da humanidade. Não somente um reconhecimento de bravura, de patriotismo, mas principalmente, um mergulho na escuridão, no mistério da guerra e na reconstrução da vida para essas sobreviventes.

Nesta vibe de mulheres na guerra, acrescentamos a emblemática história das Bruxas da noite. Este apelido foi dado pelos alemães do Terceiro Reich às mulheres aviadoras da Força Aérea Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. Elas faziam parte do 588º Regimento de Bombardeio Aéreo Noturno Soviético, um regimento comandado pela Coronel Marina Raskova composto exclusivamente por mulheres voluntárias. Essa  unidade realizou ao todo mais de 23 mil vôos noturnos com intensos ataques responsáveis por bombardeios que atingiram e destruíram tropas alemães. O regimento utilizava biplanos de madeira e lona, a estrutura lenta e obsoleta das aeronaves exigia que as missões ocorressem sempre durante a noite. A técnica de ataque unia aceleração, desaceleração e manobras radicais demandando  destreza e ousadia das pilotas para o sucesso dos bombardeios nos acampamentos. A manobra de fuga não permitia reação dos alemães que identificavam os ataques pelo som das aeronaves semelhante à vassoura de palha no chão, daí o apelido de bruxas da noite.

Bruxas da Noite na Segunda Guerra Mundial - Incrível História

De volta à realidade...

O que essas mulheres combatentes, o livro de Svletana, os podcasts e as bruxas da noite têm de relevante com os nossos dias? A contradição!  Há um detalhe muito propositivo no título do livro A guerra não tem rosto de mulher. A autora revisita o tema pela negação. A historiografia de guerra pode ter ocultado, calado e refutado a existência dessas testemunhas, mas elas estavam lá! Voluntárias, ou não, foram pra guerra, lutaram, sofreram, sobreviveram (e morreram também). Havia rosto de mulher na guerra! Rostos com medo, fome, dor, traumas, mas estavam lá! Escrevendo a História... Seria a guerra uma memória de orgulho feminista? Naquele momento histórico, sim, e não seremos anacrônicos para fazer esse julgamento.

Voltando ao nosso cenário em franca pandemia do coronavírus, no meio do caos a sociedade brasileira está entrincheirada com bombardeios de fake news, denúncias de corrupção, discurso de ódio, fraudes, defesa de milícias, ameaças ao Estado democrático de Direito... Nessa guerra onde está o rosto de mulher? Não há rosto de mulher! A atuação de mulheres que representem o feminismo na esfera pública é pífia, em dimensões talvez jamais vistas. A participação de mulheres no governo Bolsonaro exprime uma das menores do mundo, apenas 9% de mulheres dos 22 ministérios, ficando atrás do Sudão, Camboja, Filipinas, Afeganistão, Argélia e Gabão. Eram três mulheres sendo que a namoradinha do Brasil já foi demitida. Sororidade a parte, são figuras totalmente caricatas, inexpressivas, figuras decorativas submissas a um governo misógino. Da mesma forma, O Poder Legislativo também agoniza em representatividade feminina, sendo 2% de mulheres no Senado e 15% na Câmara de Deputados. Não há muito do que se orgulhar, são discussões do mais baixo nível em redes sociais, acusações, favorecimentos, carreirismo, traições partidárias, ou seja, mulheres aprendendo a jogar o jogo masculino do poder.


Que bom que a escritora Svetlana resgatou a honrosa memória das mulheres combatentes da Segunda Guerra Mundial. Elas existiram (e ainda existem) e construíram uma narrativa de luta feminina e tiveram o que dizer. Aguardemos que no século XXII alguma escritora revise a nossa obscura história política e encontre algumas Bruxas da Noite.  

quinta-feira, 21 de maio de 2020

ESCRITOS DO ISOLAMENTO - PARTE 1

 Máscara e álcool gel


Portal LIS - Localizador de Informação em SaúdeAs palavras do confinamento nem sempre obedecem ao tempo cronológico, à coerência temática, à norma ortográfica ou à estética. As palavras do confinamento são livres e libertárias. Elas ecoam entre a discussão e o silêncio, entre um meme engraçado e o choro de saudade, entre uma música e a mensagem no grupo familiar, Palavras ecoam - fiquem em casa!!! E mais tarde ecoam num panelaço: Fora Bolsonaroooo!!!



Não fomos feitos para prisões, embora não tenhamos a mínima empatia com os encarcerados. Aliás, sempre julgamos o tempo de cumprimento de pena (dos outros) ínfimos e fáceis de cumprir! Falo de “prisão” com aspas, muitas aspas. Prisão não corresponde aos cômodos higienizados da nossa casa, com almofadas, wifi, Netflix,  água gelada (até uma cervejinha importada),  alimentação fitness e  sobremesa diet , não é prisão! Pai perdoa porque não sabemos o significado da palavra prisão!

 O que vivemos hoje não é prisão, óbvio! Trata-se de isolamento social durante a pandemia! Uma medida sanitária drástica, mas importante, para interromper a circulação de pessoas e serviços e assim reduzir a curva de transmissão viral. Não há lugar seguro, nem um sequer! Vivemos o momento mais dramático dos últimos 100 anos, a Era dos extremos que o saudoso historiador Hobbsbawm denominava o século XX  referindo-se às Grandes Guerras, às crises econômicas, à corrida espacial, à Guerra Fria, ao colonialismo, deram lugar a um vírus no século XXI.  Temos uma pandemia! 

Coronavírus (Covid-19) - ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar

O significado da palavra Pandemia só existia nos dicionários e livros de biologia, uma epidemia de grandes proporções cujo agente etiológico (infeccioso) espalha-se entre os humanos sem respeitar barreiras geográficas, econômicas ou climáticas. Entre 1918 e 1919, houve a pandemia da gripe espanhola,  na verdade ela começou em campos de treinamento militar nos EUA e espalhou pelo mundo atingindo 500 milhões de pessoas e dizimando aproximadamente  50  milhões. 

Na condição de profissional de saúde e servidora pública do SUS, nunca vivi uma pandemia., nem eu e nem ninguém. Só conhecemos  pandemia  através dos filmes, sempre foi sucesso de bilheteria a ideia de devastação por um vírus mortal nas telas de cinema, mas não estávamos preparados para viver essa ficção.  O filósofo Braudillard, em seu livro Simulacro e simulação (1980), afirma que  a sociedade busca a hiper-realidade para superar a sua realidade contraditória. Sim, de fato são interessantes as epidemias, a guerra bacteriológica dos estúdios de cinema, da cidade imaginada, da arquitetura cenográfica, dos heróis e heroínas num jogo de ilusões.  Em  fevereiro de 2020, a pandemia do coronavírus saiu da hiper-realidade ficcional dos estúdios para contagiar o planeta.

Diferente da gripe espanhola, o coronavírus teve seus primeiros registros em dezembro de 2019 na cidade de Wuhan, na China. Apesar da seriedade da crise sanitária vivenciada pela China,  as autoridades sanitárias de todo o globo postergaram o que estava por vir... talvez ignorando um outro conceito tão importante na geopolítica chamado aldeia global. O termo aldeia global engloba a relação do progresso tecnológico e o encurtamento das distâncias tempo-espaço. O mundo foi destribalizado pela tecnologia e pela circulação de pessoas e serviços, assim a borboleta que bateu as asas  em Wuhan iria fazer (e fez) tufão na Europa, nos EUA e aqui também!

Enquanto em fevereiro em Wuhan o coronavirus aterrorizava a população, colapsava o  sistema de saúde e econômico, aqui no Brasil o carnaval bombava em todos os estados com megablocos arrastando multidões de turistas. No primeiro momento circulavam ideias otimistas a despeito da diminuição da virulência do covid-19 pela questão climática do continente. Aqui a chapa esquenta literalmente! Vamos combinar que brasileiro não tem  medo de vírus, aliás o brasileiro tem medo de pouca coisa na vida! Nosso povo senta nas calçadas, frita nas praias, toma água contaminada, nada nas enchentes, ingere  doses cavalares de agrotóxicos, almoça e janta fast food e de uns tempos pra cá já nem acredita mais em vacina. Brasileiro é Highlander!!! Acreditou-se que o “calor  dos trópicos” e o fôlego do brasileiro fossem inativar o vírus, isso não ocorreu. E ainda no ziriguidum  do carnaval, o Ministério da Saúde  anuncia o primeiro caso “importado” na cidade de São Paulo.

A partir do registro do caso 1, vieram os seguintes, mais outros, os casos graves e óbitos. Assim, o mês de março acordou o brasileiro (ainda de ressaca) para a realidade e assuntos   até então nem um pouco significativos do cotidiano; o SUS tem condições de suportar a pandemia? Temos profissionais de saúde capacitados? Há leitos de CTI para todos? O que é EPI (equipamento de proteção individual)? Quarentena X isolamento social... O infectologista falou sobre transmissão... O epidemiologista orientou sobre sintomas... A Fiocruz está pesquisando vacina! Os pesquisadores da USP estão testando ventiladores!  O crescimento exponencial vai subir (Ai meu Deus!) A curva epidêmica tem que achatar... Coloca máscara,  tira máscara, toma vitamina D, passa álcool gel, lave as mãos... Chegaaaa!!!!

O filósofo Byung –Chul Han,  em seu livro Sociedade da transparência (2017), afirma que os habitantes digitais estão ligados em rede e têm uma intensiva comunicação entre si. Trata-se de uma população carcerária da hipercomunicação.  Nossa prisão digital não tem muros, tem exposição e vigilância mútuas ilusoriamente disfarçadas de liberdade.  A pandemia na era da hipercomunicação maltrata em tempo real. Para o autor, “mais informações e mais comunicação não clarificam o mundo; a transparência tampouco o torna clarividente. A massa de informações não gera verdade, e quanto mais se liberam informações tanto mais transparente torna-se o mundo. Por isso a hiperinformação e a hipercomunicação não trazem luz à escuridão” (p.96). 

Com 156 novos casos, Amazonas vai a 62 óbitos por Covid-19 ...
 Apesar do humor incontestável do brasileiro, da capacidade desse povo ressurgir das cinzas com riso, graça e alegria, na verdade estamos com medo. Com medo e confusos no meio dessa escuridão de informações, de ações governamentais toscas e do número dramático de vidas perdidas, porque sabemos  que não somos expectadores de um filme de ficção.