A Silenciosa highway da pandemia
Este blog - Desprecariza-ação - foi criado em 2013,
como produto da minha dissertação de Mestrado, cujo objeto de pesquisa norteia o
mundo do trabalho e o crescimento da precarização nas relações de trabalho a
partir da década de 80, principalmente no setor saúde. Sem qualquer rigor
metodológico, toda a produção textual do blog visa apresentar reflexões e
críticas numa estética pouco ortodoxa, ora utilizando ferramentas teóricas e
formais, ora utilizando músicas, filmes, piadas, sarcasmo e outros formatos de
manifesto e desabafo. Os Escritos do Isolamento, textos produzidos durante a pandemia
do coronavírus, seguem essa mesma premissa libertária, sendo que essa parte 4
que acabo de escrever tem algo de especial; são impressões que emanam individualidade e subjetividade da narrativa em 1ª pessoa, assumindo o protagonismo da
minha própria história de luta, como mulher, profissional de saúde, servidora
pública, historiadora e antifascista. Boa leitura!
Hoje acordei cedo. Tempo
nublado, um vento frio de maio... a repórter do tempo prometeu um dia de sol,
mas ele não veio. Pensando bem, não há motivo para o astro brilhar!
O dia está nublado, tem pandemia há mais de setenta dias, mas tem trabalho também! Nem todas as atividades profissionais possibilitam o isolamento social. No meu caso, como enfermeira de Unidade Básica de Saúde (UBS) em plena campanha de vacinação contra Influenza seria correto dizer que praticamos o “ajuntamento social”.
A UBS em que trabalho
situa-se no Centro de Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro.
Diferente das outras campanhas, este ano, a vacinação foi deslocada para um
posto itinerante no Teatro Municipal João Caetano. A estratégia visava manter o
distanciamento necessário dos idosos e demais grupos nas filas e também manter
o fluxo de entrada e saída sem muito contato entre os usuários.
Com um extenso currículo em
vacinação, confesso que já participei de campanha em creches, escolas,
shopping, centro cultural, centro espírita, igrejas, museu e até carceragem,
mas em teatro foi a primeira vez. Considerado um dos cartões postais da cidade,
o espaço elegante de estilo neoclássico possui uma movimentada agenda artística
e abriga desde 1827 a história cultural da cidade. Não saberia contar quantos
espetáculos maravilhosos já assiste neste lugar. No silêncio da ampla recepção de
tábua corrida com cheiro de madeira nobre traço essas linhas no intervalo do
almoço.
Como descrito acima o teatro
situa-se no centro da cidade, em frente ao shopping mais freqüentado pela
sociedade niteroiense. O dinâmico vai e vem de bolsas, sacolas, encontros,
cineminha, táxis, cafezinho, almoço executivo etc. foi substituído por tapumes
e silêncio! Pela porta de vidro do
teatro observo a circulação de pessoas na rua, rostos cobertos por máscaras,
máscaras de todas as cores, absortas em seus devaneios. Não ouço vozes, só passos!
De repente um morador de rua passa gritando palavras sem sentido, ninguém se
importa!
A cena possui uma dinâmica cenográfica,
quase uma realidade simulada. Lembro do filme que assisti há muito tempo chamado
Show de Truman (1998). O filme narra a vida de Truman, um jovem que desde o
nascimento tem sua vida observada num reality show assistido por milhares de
pessoas. Truman possui uma vida simples e pacata, sem imaginar o mundo do
espetáculo que o cerca. Nada na vida de Truman é real, esposa, mãe, amigos,
vizinhos, são todos atores com diálogos ensaiados. O dia, a noite, o sol, a
chuva tudo faz parte da cenografia, até propagandas (sim, tem merchandising no
cotidiano dele) e pior, ele é o único que desconhece a realidade.
Por vezes acho que o
coronavírus infectou nossa realidade, como a de Truman. Quem sabe esse não
seria um reality? Tantos atores, cenas, equipamentos, manifestações, lives, publicidade, aplausos, cruzes,
covas etc. Nesse aspecto, o teatro seria de fato o lugar mais apropriado para
estarmos atuando, como personagens do show nosso figurino envolve máscara,
capote, touca, luvas, óculos, face shield e toda a simbologia apavorante da
contaminação.
Envolta no desassossego deste
dia nublado sinto necessidade de refletir sobre o papel do profissional de
saúde diante da pandemia. Apesar de tantos dias após a notificação do primeiro
caso, os conflitos internos permanecem - o medo e insegurança pela atividade de
risco X a responsabilidade social de intervir e salvar vidas. Para além dos
heróis e heroínas das propagandas existem seres humanos enfrentando, talvez, o
pior desafio de suas vidas (ir e vir, aprender e fazer, errar e refazer, cuidar
de si e do outro) tudo em tempo real.
Pela TV, como no reality
show, tudo acontece nas Unidades de Terapia Intensiva, nos Hospitais de
campanha, no front do combate, mas,
não é bem assim. Na realidade as práticas em saúde se distribuem de acordo
com o grau de complexidade da situação. Sendo assim, a Unidade Básica de Saúde
(UBS) e as unidades de Estratégia de Saúde da Família (ESF) são a porta de
entrada do Sistema Único de Saúde. A UBS desempenha um papel central na
garantia de acesso à população, cuja finalidade visa promover, proteger e prevenir
agravos, disponibilizar exames, diagnósticos, tratamento, reabilitação, redução
de danos e manutenção da saúde. Durante a pandemia, novas ações foram acrescidas
ao serviço, como teste rápido, coleta de swabs, notificações, atendimentos,
exames e encaminhamentos.
Como o próprio nome já
define, o caráter básico das UBS não permite atividades de média ou alta
complexidade. As unidades possuem entraves estruturais no fluxo de pacientes, em
corredores estreitos e movimentados, falta de ambulâncias, rede de oxigênio,
salas com pouca ventilação, elevadores, e outras excentricidades, como a UBS em
que trabalho, situada em prédio comercial no 3º e 4º andares. Dá para imaginar
pacientes com covid-19, subindo e descendo nos elevadores de um prédio
comercial?
Além disso, a pandemia reduziu
de forma significativa o nosso quadro de funcionários, houve afastamento por
idade (superior a 60 anos), por comorbidade e também pelo contágio da doença. Cabe
esclarecer que o número significativo de servidores acima de 60 anos no serviço
público justifica-se pelos salários achatados, sem política de reajuste há anos.
Essa medida de desvalorização acaba mantendo o servidor na ativa, na
expectativa de obter algum benefício ou “penduricalho” que possa tornar a parca
aposentadoria mais digna. O contingente de funcionários mais jovens portadores
de doenças crônicas e debilitantes segue a mesma lógica perversa
Do quadro de funcionários já
reduzido praticamente a metade, hoje contabilizamos cerca de vinte
profissionais contaminados pelo coronavírus. Não sei explicar o motivo de tamanha
contaminação, aliás, acho que sei. A pandemia teve início no verão, mês de
férias, carnaval, eventos e , inclusive para o nível central (só pra lembrar o
Titanic afundou à noite). Apesar do verão, outros discursos e ações facilitaram
o contágio na UBS, houve banalização sobre o avanço da epidemia, irregularidade
no fornecimento de EPI’s, fluidez na biossegurança dos funcionários, exposição
em transportes públicos lotados, atraso na sanitização da unidade, fora os
devaneios sobre a gripezinha, a cloroquina e vida x economia.
Embora a pandemia tenha iniciado na China, o
drama vivido pela Itália e pela Espanha deveria ser pedagógico, mas não foi! O
que estava por vir foi ignorado em todas as instâncias do território nacional. Aqui
em Niterói não foi exceção, a criação do gabinete de crise foi postergada pela
alta administração. Interessante que a
retórica em saúde apela tanto para educação, promoção e prevenção de agravos,
mas quando a antecipação das ações (capacitação, treinamentos, protocolos, fluxogramas,
aquisição de materiais, pactuação público/privada) se tornou imprescindível
para diminuir o impacto da epidemia houve demora, a gestão pública perdeu a
oportunidade de usar o tempo a seu favor, a favor de todos.
Dentre os atropelos diários,
a comunicação tem sido a área mais afetada. A comunicação em saúde é uma das
bases essenciais ao exercício pleno da cidadania e do direito à saúde
estabelecidos na legislação do SUS. A comunicação abrange um conjunto de ferramentas
de transmissão de conteúdos, dados e práticas a serviço da saúde, ferramenta de
publicidade e transparência aos atos administrativos. Comunicar e informar gera
produção de sentido em espaços de lutas e negociações. A comunicação e a
informação devem ser pactuadas visando adesão às políticas de enfrentamento
pelo coletivo a fim de aperfeiçoar o sistema público de saúde e assegurar a
participação dos cidadãos na construção de políticas públicas exitosas.
No decorrer desses 70 e
muitos dias foi possível constatar uma verdadeira Babel de informações, entre medidas sanitárias, informes aos
cidadãos, flexibilização da vida social, retorno da mobilidade urbana e da
economia da cidade. No caso específico da comunicação para as práticas em saúde,
a falta de clareza tem sido um obstáculo difícil de ultrapassar. As tomadas de decisões são ditas e desditas, whatsapp pra cá, áudio pra lá, e-mails,
dados atrasados, atos e contra-atos e até fake
news, resultando em estresse, fadiga, desconfiança, desperdício material, equívocos,
conflitos e retrabalho! A escassa força de trabalho se desgastando no
retrabalho.
Por mais contraditório que
possa parecer quanto mais vazia for a comunicação mais envolvida em embrolhos e
arrogância. Essa atitude torna-se tão contagiante e tão nociva a ponto de confundir
os cidadãos, de deslegitimar profissionais, intimidar gestores e diretores com
expertise. Afirmo, a arte da guerra não dá conta de uma pandemia, o
enfrentamento exige racionalidade sanitária, como já vivenciada em outras epidemias
como dengue, Zika, H1N1, sarampo etc. Penso que a evolução da pandemia no
Brasil é diretamente proporcional à incapacidade dos agentes políticos em estabelecer
um diálogo conciliatório e humanitário. Diálogo para “simplesmente” salvar
vidas!!!
A comunicação eficaz é
direito de todos os cidadãos, em específico os profissionais de saúde, que
estão à frente do combate. Não se trata de uma opção ou benevolência dos
gestores, mas transparência dos atos administrativos. Os pronunciamentos diários do prefeito em
formato de lives, por mais otimistas
que pareçam, não comunicam de fato. Comunicar implica na ação de participar
junto. A comunicação excede a
autopromoção e o ufanismo, a comunicação eficaz deve ser guiada pela troca e
não pelo resultado. Pode haver êxito em anunciar à sociedade ações que serão executadas
por servidores (profissionais de saúde) totalmente desinformados?
Quando a comunicação é
negligenciada ou mitigada como valor fundamental das práticas em saúde, qual o
dano para o cidadão e para a sociedade? Vidas perdidas! O desperdício de
recursos humanos e materiais, o que acarreta? Perda de vidas! A fadiga dos trabalhadores e falta de
protocolos em que resulta? Perda de Vidas!
Ordens confusas, dados controversos, o que causa? Perda de vidas!
Sairemos dessa pandemia com
muitas indagações, pouco aprendizado e muitos óbitos.
Em respeito aos cidadãos atônitos,
machucados, sofridos e enlutados vistos na rua do teatro encerro esse escrito deixando
um trecho da canção Infinita highway (1980)
dos Engenheiros do Hawaíi:
dos Engenheiros do Hawaíi:
"Estamos sós e nenhum de nós
Sabe onde vai chegar
Estamos vivos sem motivos
Que motivos temos pra estar?
Atrás de palavras escondidas
Nas entrelinhas do horizonte dessa highway
Silenciosa highway".
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