A carne mais barata da pandemia
Filas na Caixa Econômica Federal - RJ |
São quase 38.000 óbitos. No ranking do mapeamento temos
São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Amazonas Pernambuco e Pará. São regiões
metropolitanas, cidades do entorno industrial, pequenos municípios, inclusive
vilarejos, ilhas e aldeias (a população indígena não foi poupada). Um panorama
que está levando o Sistema Único de Saúde (SUS) ao colapso estrutural e assistencial.
Não podemos deixar de destacar que essa é uma tragédia
anunciada há muito tempo. Afinal, o SUS sempre foi “sangrado” diante de endemias como as arboviroses, (dengue, zika, chikungunya e febre amarela) nas
Síndromes Respiratórias Agudas Graves, como influenza, o H1N1, e recentemente
com o sarampo. A diferença em relação ao
novo Coronavírus está no avanço e no desconhecimento da doença, na falta de
estrutura hospitalar para atender ao paciente crítico, no alto índice de contaminação
dos trabalhadores da saúde e na escassez de profissionais preparados para atuar
em unidades de terapia intensiva.
O título “a carne mais barata da epidemia (e do mercado
também)” procura refletir sobre a penalização dos desiguais e as políticas públicas de
enfrentamento à pandemia, quase sempre impregnadas de oportunismo, acabam reforçando as desigualdades sem qualquer alteridade com os outsiders, negros, pobres,
mulheres, desempregados, indígenas, analfabetos, nordestinos, LGBTQI+, desalentados,
marginalizados e um incontável número de invisíveis.
Nada pode justificar as enormes filas nas agências da
Caixa para aquisição de auxílio emergencial, o desespero dos sem-documentos na Receita Federal, o transporte
lotado, o serviço "essencial" dos empregados domésticos, os hospitais
lotados, pacientes agonizando sem vagas em UTI’s, falta de testagem, confrontos
policiais em comunidades, população indígena desassistida, demissões... O caos
social sendo utilizado pelo Governo Federal para alimentar seu populismo e justificar
medidas autoritárias.
Revista Lancet |
Na histórica lista da carne mais barata incorporam-se,
nesse momento de pandemia, os profissionais de saúde do SUS. Relacionar a
vulnerabilidade social que tantos brasileiros amargam durante toda a vida com a
atual situação dos trabalhadores do SUS pode ser um exagero, mas quando analisamos
as diversas categorias que abrangem o setor saúde observamos a sombra da invisibilidade e da vulnerabilidade em questão. Aliás, quem conhece a luta e a realidade desses
trabalhadores sabe que não há nenhum glamour no jaleco branco. A pandemia chegou
para desvelar e publicizar as condições de informalidade e desregulamentação de
muitos trabalhadores do SUS.
Não se trata de uma realidade excepcional nem recente.
Desde 1980, o crescimento do trabalho precário ou de precariados no Brasil tem
sido diagnosticado, estudado e denunciado por pesquisadores sérios numa extensa produção bibliográfica. Inclusive
a criação desse blog em 2013 em virtude da dissertação de Mestrado com o objetivo de divulgar artigos relacionados à formação profissional em saúde e a precarização do Trabalho no
SUS.
Embora já bem depauperado,
o SUS possui pouco mais de três décadas; o acesso universal à saúde como
direito foi estabelecido pela Constituição Federal de 1988. Talvez seja esse o
direito mais revolucionário e audacioso garantido pela emblemática constituição
(aliás, garantir saúde para todos sempre incomodou muitos setores). Desde sua criação em 1988,o SUS vem sofrendo anos de cortes orçamentários, desvios de verbas, pedaladas
e corrupções, até que a conta chegou! Assim também sua força de trabalho (servidores públicos
federais, estaduais e municipais) foi se desidratando pelas políticas
neoliberais, suspensão de concursos públicos, desvalorização salarial, redução
de investimentos e tantos outros. Logo, as exonerações, aposentadorias, licenças
e mortes, não produziram substituições equivalentes.
Para cuidar da saúde de mais
de 210 milhões de brasileiros, sim todos nós utilizamos o SUS até quando
compramos uma maquiagem, os entes governamentais recorreram a diversas mutações
de trabalho de caráter flexível para substituir o servidor público. O
trabalhador de saúde caiu no limbo da informalidade, da perda de direitos e
garantias trabalhistas como prestação de
serviço por autonomia, contratos por tempo determinado, terceirizações, cooperativas,
Organizações de Saúde etc.
Essa miscelânea de
relações de trabalho acarreta alta rotatividade, desvinculação pedagógica,
discriminação, exclusão, desemprego, como também a sujeição, intimidação do
trabalhador e o enfraquecimento sindical. São fatores impeditivos para a
mobilização e resistência coletivas dos trabalhadores. Essas relações
multifacetadas que envolvem a força de trabalho no SUS configuram a lógica
destrutiva do capitalismo contemporâneo.
A insolvência do Ministério da Saúde e o sucateamento do
acesso à saúde, bem como esfacelamento de sua força de trabalho, não previa o
enfrentamento de uma pandemia, óbvio! 32 anos depois, o Sistema Único de Saúde
foi reivindicado por todos... Claro! As ações de combate ao coronavírus serão a
única forma de sobrevivência da economia liberal no país – que destino!. Através
dessa conjuntura nefasta, o drama vivenciado pelos trabalhadores da saúde
invade os noticiários diariamente, risco de contaminação, adoecimento, óbitos,
falta de equipamentos de proteção individual (EPI’s), salários atrasados,
denúncias, manifestações, fraudes, contratos sem garantias, assédios, enfim,
toda forma de violência contra o trabalhador.
Manifestação no Palácio do Planalto - DF |
A precarização do trabalhador na linha de frente da
epidemia, inclusive estagiários, recém formados e voluntários, levou a inclusão
dessa categoria como mais uma das carnes baratas abatidas durante a pandemia.
Dentre elas, estão as mulheres. Mulheres
de todas as cores, corpos, línguas, crenças, formações e sexualidades – corpos
vulneráveis. São técnicas e auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas,
farmacêuticas, técnicas de RX, atendentes, enfermeiras, médicas,
nutricionistas, auxiliares de serviços gerais, copeiras, técnicas de
laboratório, patologistas, assistentes sociais, psicólogas, cuidadoras,
motoristas, vigilantes e tantas outras forças que se somam ao cuidado em saúde.
O artigo “A força de trabalho da saúde no Brasil:
focalizando a feminização” aponta que o setor saúde tem forte vocação feminina
em todo o mundo. No Brasil a ocorrência do fenômeno da feminização do setor
saúde surge a partir de 1970. Para as
autoras, o contingente feminino tem se tornado francamente majoritário neste
ramo da economia. Na década de 80 houve um crescimento de 302% na categoria
médica e 344% na odontológica. A pesquisa também aponta para 95% da presença
feminina entre os profissionais de enfermagem e 90,39% entre os nutricionistas
(ENSP/Fiocruz - 2016). De acordo com os dados levantados pelas autoras em 2016,
a pandemia do coronavírus tem na frente do combate rosto de mulher. Rostos marcados, corpos agredidos por dentro
e por fora, dor, cansaço, fadiga, medo, indignação, dúvidas, abandono, rostos
que choram, não por fraqueza, mas por impotência.
Hospital de campanha do Maracanã |
O domínio da força de trabalho feminina no setor saúde levanta
tantas questões a serem respondidas. Seria essa a razão das condições inseguras
de trabalho? A precarização do SUS retroalimenta a exploração feminina? A imagem
publicitária de heroínas impulsiona a mulher a renunciar sua biossegurança? Trabalho
ou missão? A sociedade que aplaude é a mesma que bate? E o silêncio dos legisladores? Trabalhadoras de saúde morrendo de Covid -19 sem direitos
trabalhistas, quem se importa? Plantonistas sem condições humanas básicas deitadas no chão de hospitais, não
causam indignação? Cadê os direitos humanos? Ameaças, punições, cortes salariais... mulheres trabalhadoras lançadas nas trincheiras do
vírus!!!
Por mais que soe romântico, os agradecimentos, mensagens e
aplausos não apagarão a história dessas mulheres que entraram nessa guerra
laboral (não é viral) sem recrutamento, sem direitos, sem armas, sem nada!
REFERÊNCIAS:
Wermelinger, M; Machado, M. H; Oliveira, E. S.; Moyses,
NM. N. A força de trabalho da saúde no
Brasil: focalizando a feminização : ENSP/ Fiocruz, 2016.
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