quarta-feira, 10 de junho de 2020

ESCRITOS DO ISOLAMENTO - PARTE 3



            A carne mais barata da pandemia

Projetos buscam facilitar pagamento de auxílio emergencial durante ...
Filas na Caixa Econômica Federal - RJ
Diferente de outros países, o coronavírus chegou por aqui de avião, passaporte carimbado, amigos e festas regadas a Chandon. Sim, o vírus “pegou carona” nas vias aéreas de empresários, influenciadores, artistas, turistas, políticos e desembarcou aqui. A divulgação dos primeiros casos pela rede privada de saúde, as internações, e inclusive óbitos, nos fez pensar que a pandemia seguiria sua escalada no Brasil de forma simétrica - ledo engano!!! A pandemia rapidamente bateu à porta da vulnerabilidade social e entrou impiedosamente nas periferias, nos aglomerados urbanos, no campesinato rural, nas instituições penais etc. Parafraseando a militante Elza Soares, a pandemia chegou à carne mais barata do mercado!

São quase 38.000 óbitos. No ranking do mapeamento temos São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Amazonas Pernambuco e Pará. São regiões metropolitanas, cidades do entorno industrial, pequenos municípios, inclusive vilarejos, ilhas e aldeias (a população indígena não foi poupada). Um panorama que está levando o Sistema Único de Saúde (SUS) ao colapso estrutural e assistencial.

Não podemos deixar de destacar que essa é uma tragédia anunciada há muito tempo. Afinal, o SUS sempre foi “sangrado” diante de endemias como as arboviroses, (dengue, zika, chikungunya e febre amarela) nas Síndromes Respiratórias Agudas Graves, como influenza, o H1N1, e recentemente com o sarampo.  A diferença em relação ao novo Coronavírus está no avanço e no desconhecimento da doença, na falta de estrutura hospitalar para atender ao paciente crítico, no alto índice de contaminação dos trabalhadores da saúde e na escassez de profissionais preparados para atuar em unidades de terapia intensiva.

O título “a carne mais barata da epidemia (e do mercado também)” procura refletir sobre a penalização dos desiguais e as políticas públicas de enfrentamento à pandemia, quase sempre impregnadas de oportunismo, acabam reforçando as desigualdades sem qualquer alteridade com os outsiders, negros, pobres, mulheres, desempregados, indígenas, analfabetos, nordestinos, LGBTQI+, desalentados, marginalizados e um incontável número de invisíveis.

Nada pode justificar as enormes filas nas agências da Caixa para aquisição de auxílio emergencial, o desespero dos sem-documentos na Receita Federal, o transporte lotado, o serviço "essencial" dos empregados domésticos, os hospitais lotados, pacientes agonizando sem vagas em UTI’s, falta de testagem, confrontos policiais em comunidades, população indígena desassistida, demissões... O caos social sendo utilizado pelo Governo Federal para alimentar seu populismo e justificar medidas autoritárias.  
Revista Lancet 

Na histórica lista da carne mais barata incorporam-se, nesse momento de pandemia, os profissionais de saúde do SUS. Relacionar a vulnerabilidade social que tantos brasileiros amargam durante toda a vida com a atual situação dos trabalhadores do SUS pode ser um exagero, mas quando analisamos as diversas categorias que abrangem o setor saúde observamos a sombra da invisibilidade e da vulnerabilidade em questão. Aliás, quem conhece a luta e a realidade desses trabalhadores sabe que não há nenhum glamour no jaleco branco. A pandemia chegou para desvelar e publicizar as condições de informalidade e desregulamentação de muitos trabalhadores do SUS.

Não se trata de uma realidade excepcional nem recente. Desde 1980, o crescimento do trabalho precário ou de precariados no Brasil tem sido diagnosticado, estudado e denunciado por pesquisadores sérios  numa extensa produção bibliográfica. Inclusive a criação desse blog em 2013 em virtude da dissertação de Mestrado com o objetivo de divulgar artigos relacionados à formação profissional em saúde e a precarização do Trabalho no SUS.  

Embora já bem depauperado, o SUS possui pouco mais de três décadas; o acesso universal à saúde como direito foi estabelecido pela Constituição Federal de 1988. Talvez seja esse o direito mais revolucionário e audacioso garantido pela emblemática constituição (aliás, garantir saúde para todos sempre incomodou muitos setores). Desde sua criação em 1988,o SUS vem sofrendo anos de cortes orçamentários, desvios de verbas, pedaladas e corrupções, até que a conta chegou! Assim também sua força de trabalho (servidores públicos federais, estaduais e municipais) foi se desidratando pelas políticas neoliberais, suspensão de concursos públicos, desvalorização salarial, redução de investimentos e tantos outros. Logo, as exonerações, aposentadorias, licenças e mortes, não produziram substituições equivalentes.

Para cuidar da saúde de mais de 210 milhões de brasileiros, sim todos nós utilizamos o SUS até quando compramos uma maquiagem, os entes governamentais recorreram a diversas mutações de trabalho de caráter flexível para substituir o servidor público. O trabalhador de saúde caiu no limbo da informalidade, da perda de direitos e garantias trabalhistas  como prestação de serviço por autonomia, contratos por tempo determinado, terceirizações, cooperativas, Organizações de Saúde etc.  

Essa miscelânea de relações de trabalho acarreta alta rotatividade, desvinculação pedagógica, discriminação, exclusão, desemprego, como também a sujeição, intimidação do trabalhador e o enfraquecimento sindical. São fatores impeditivos para a mobilização e resistência coletivas dos trabalhadores. Essas relações multifacetadas que envolvem a força de trabalho no SUS configuram a lógica destrutiva do capitalismo contemporâneo.   

A insolvência do Ministério da Saúde e o sucateamento do acesso à saúde, bem como esfacelamento de sua força de trabalho, não previa o enfrentamento de uma pandemia, óbvio! 32 anos depois, o Sistema Único de Saúde foi reivindicado por todos... Claro! As ações de combate ao coronavírus serão a única forma de sobrevivência da economia liberal no país – que destino!. Através dessa conjuntura nefasta, o drama vivenciado pelos trabalhadores da saúde invade os noticiários diariamente, risco de contaminação, adoecimento, óbitos, falta de equipamentos de proteção individual (EPI’s), salários atrasados, denúncias, manifestações, fraudes, contratos sem garantias, assédios, enfim, toda forma de violência contra o trabalhador.
Enfermeiros fazem ato no DF em favor do isolamento social ...
Manifestação no Palácio do Planalto - DF

A precarização do trabalhador na linha de frente da epidemia, inclusive estagiários, recém formados e voluntários, levou a inclusão dessa categoria como mais uma das carnes baratas abatidas durante a pandemia. Dentre elas, estão as mulheres. Mulheres de todas as cores, corpos, línguas, crenças, formações e sexualidades – corpos vulneráveis. São técnicas e auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas, farmacêuticas, técnicas de RX, atendentes, enfermeiras, médicas, nutricionistas, auxiliares de serviços gerais, copeiras, técnicas de laboratório, patologistas, assistentes sociais, psicólogas, cuidadoras, motoristas, vigilantes e tantas outras forças que se somam ao cuidado em saúde.

O artigo “A força de trabalho da saúde no Brasil: focalizando a feminização” aponta que o setor saúde tem forte vocação feminina em todo o mundo. No Brasil a ocorrência do fenômeno da feminização do setor saúde surge a partir de 1970.  Para as autoras, o contingente feminino tem se tornado francamente majoritário neste ramo da economia. Na década de 80 houve um crescimento de 302% na categoria médica e 344% na odontológica. A pesquisa também aponta para 95% da presença feminina entre os profissionais de enfermagem e 90,39% entre os nutricionistas (ENSP/Fiocruz - 2016). De acordo com os dados levantados pelas autoras em 2016, a pandemia do coronavírus tem na frente do combate rosto de mulher.  Rostos marcados, corpos agredidos por dentro e por fora, dor, cansaço, fadiga, medo, indignação, dúvidas, abandono, rostos que choram, não por fraqueza, mas por impotência. 
Hospital de campanha do Maracanã


O domínio da força de trabalho feminina no setor saúde levanta tantas questões a serem respondidas. Seria essa a razão das condições inseguras de trabalho? A precarização do SUS retroalimenta a exploração feminina? A imagem publicitária de heroínas impulsiona a mulher a renunciar sua biossegurança? Trabalho ou missão? A sociedade que aplaude é a mesma que bate? E o silêncio dos legisladores? Trabalhadoras de saúde morrendo de Covid -19 sem direitos trabalhistas, quem se importa? Plantonistas sem condições humanas básicas deitadas no chão de hospitais, não causam indignação? Cadê os direitos humanos? Ameaças, punições, cortes salariais... mulheres  trabalhadoras lançadas nas trincheiras do vírus!!!

Por mais que soe romântico, os agradecimentos, mensagens e aplausos não apagarão a história dessas mulheres que entraram nessa guerra laboral (não é viral) sem recrutamento, sem direitos, sem armas, sem nada!

REFERÊNCIAS:

Wermelinger, M; Machado, M. H; Oliveira, E. S.; Moyses, NM. N. A força de trabalho da saúde no Brasil: focalizando a feminização : ENSP/ Fiocruz, 2016.

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