terça-feira, 15 de junho de 2021

ESCRITOS DO ISOLAMENTO - PARTE 6


                    ESCRITÓRIOS VAZIOS & CASAS CHEIAS 


    Retornei a São Paulo em maio deste ano. No aeroporto utilizei transporte por aplicativo com um motorista muito solícito e falante. A conversa fluía sobre previsão do tempo para o final de semana, o preço do combustível, a crise do país, a campanha de vacinação, a covid que ele adquiriu em dezembro e críticas a política do “fique em casa” do governador Dória, evitando  entrar no embate político eu ouvi mais do que falei.




     No trajeto passarmos pela região da Berrini, área conhecida como um dos pólos econômicos da cidade. Retomando  a conversa sobre a crise financeira que o país atravessa, ele falou: “ estes arranha-céus aqui da Berrini   viraram prédios-fantasmas!” Explicou que as empresas fecharam suas portas e assim  prejudicaram a sua atividade no transporte por aplicativo.  “toda sexta feira eu rodava muito! Empresários pra lá e pra cá, congressos, workshops, feiras, exposições, levava japoneses para o Maksoud Plaza e  de lá para aeroporto. Hoje a cidade não tem eventos ... 

o aeroporto está vazio”.

    Faz sentido! São Paulo é uma cidade cosmopolita que possui um intenso dinamismo laboral. Na região da Berrini, por exemplo, circulam cerca de 74.000 pessoas em dias úteis distribuídas em mais de 7.000 importantes empresas nacionais e internacionais. No mesmo ritmo temos a Avenida Paulista, Itaim Bibi, Brigadeiro Faria Lima, Marginal de Pinheiros dentre tantas outras. Em virtude da pandemia e da redução drástica das atividades presenciais o ano de 2020 impôs um novo paradigma de trabalho “escritórios vazios X casas cheias”.

    Quem nunca sonhou em trabalhar em casa? Talvez o home Office seja a modalidade que mais desperte fetiche no trabalhador, A atividade flexibiliza o trabalho em três importantes dimensões - tempo, local e meios. Tempo, na gestão do tempo cronológico conforme a conveniência do trabalhador, trabalhar no horário de adequação familiar, interromper quando necessário para retomar a qualquer tempo. Local, o home office permite a transposição do escritório da empresa para qualquer lugar que possua a infraestrutura necessária para execução do trabalho, como a sala de casa, o quarto de um hotel, o escritório de um amigo, um hostel em outro país,  o carro e até na praia. Meios, a atividade só permite o deslocamento pelo uso de recursos tecnológicos e informacionais sofisticados, para tanto exige do trabalhador capacitação e domínio das Tecnologias de comunicação e informação (TIC’s).



 Na perspectiva do teletrabalhador, sob a liberdade da casa/trabalho e domínio do tempo, local e meios, o home office significa o fim da biometria,dos engarrafamentos, do deslocamento, do escritório, do traje executivo, da vigilância, do espaço hierarquizado, da hora do almoço, do horário comercial de produtividade, ou seja, o fim da rua. Em contraponto, trabalhar em casa requer logística, disciplina, compromisso, rotina, disponibilidade para ligações a qualquer horário, organização dos afazeres da casa sem prejuízo para os prazos e metas a cumprir. Precisa ter autogestão do tempo sem auto-sabotagem, aliás, empregador algum permitiria home office se a redução de custos  não fosse financeiramente interessante sem interferência na  produtividade.

    Segundo o professor Paulo Porto da Fundação Getúlio Vargas, a pandemia apenas acelerou um processo anterior de conjugar eficiência das operações e redução de custos. Acredita-se que um novo cenário corporativo híbrido esteja por vir, mas o que haverá de tão interessante ao empregador para manter os trabalhadores fora dos espaços minuciosamente criados para produção e controle? O filósofo coreano Byang -Chul Han,  em seu brilhante livro “A sociedade do cansaço” afirma que na sociedade do desempenho cada um carrega em si ao mesmo tempo  o detento e o guarda, a vitima e o algoz, o senhor e o escravo. A separação entre o trabalho e o não trabalho, antigamente era demarcada pelo relógio de ponto, hoje, essa separação deixou de existir na vida do trabalhador sob a narrativa de uma pretensa liberdade e autorrealização.

“Aqui não entra o outro como explorador, que me obriga a trabalhar e que me explora. Ao contrário, eu próprio exploro a mim mesmo de boa vontade e na fé que eu possa me realizar. E eu me realizo na direção da morte Otimizo a mim mesmo para morte”. (HAN, p. 116)

    Em 2017, quando Byang-Chul Han escreveu Sociedade do cansaço,  não havia pandemia do coronavírus, no primeiro capítulo do livro ele afirma que não vivemos numa época viral, mas numa época neuronal, a exemplo da depressão, do transtorno de défict de atenção com síndrome de hiperatividade, do transtorno de personalidade limítrofe ou a síndrome de Burnout etc. Na época bacteriológica ou viral o inimigo está fora, na época neuronal o inimigo está dentro. Infelizmente, a genialidade do autor lhe pregou uma peça e três anos depois temos uma pandemia viral numa sociedade neuronal, ou seja, os inimigos estão dentro e fora.

     Neste contexto, a desocupação dos arranha-céus da região da Berrini resultou na ocupação de apartamentos de luxo, coworkings, hotéis, casas de praia e serranas, mas também pequenos cômodos compartilhados nas periferias das cidades. De fato o home office não é uma modalidade democrática, ao contrário,  ele expõe as diferenças que a ocupação  dos escritórios tentava minimizar. O trabalho em casa expõe as condições de vida (relacionamento familiar, alimentação, repouso, lazer, mobiliário, ventilação, iluminação, limpeza, domínio tecnológico etc.) e estas condições perpassam o valor do trabalho.

      


Assim o escritório foi para casa e a casa não foi para lugar algum. Ela continua no mesmo endereço, apenas ganhou mais uma funcionalidade dentre tantas outras, a de ser “parceira” de alguma corporação da Berrini. Interessante que essa parceria envolve a vida e rotina de outras pessoas que não são vinculadas à empresa. Mistérios que só o capitalismo neoliberal sabe decifrar.  

    Na busca de liberdade e autorrealização, o trabalhador em home office  transforma-se num refugiado em sua própria lar, entrincheirado entre o fantasma do relógio de ponto e a velocidade da internet,  sendo ele próprio  guarda, algoz e senhor, o explorador de sua força de trabalho e controlador de sua produtividade, numa atmosfera insana entre interdependência e isolamento social. Uma autoviolência laboral em virtude de uma outra  violência (viral) mortal. 


Referências:  

HAN, Byang-Chul. Sociedade do cansaço; tradução de Enio Paulo Giachini. 

2ª edição ampliada - Petrópolis RJ : Vozes, 2017.

Imagens: UOL Economia

Entrevista com o Professor da FGV Paulo Porto :  https://canalmynews.com.br/economia/especialistas-acreditam-em-recuperacao-do-mercado-de-escritorios-na-pos-pandemia/   

Créditos também para a reflexão  pragmática de um motorista de aplicativo anônimo pelas ruas de SP. 

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