segunda-feira, 11 de setembro de 2023

UMA HISTÓRIA SOBRE FLORES E RATOS

 

Boa tarde, Planeta Terra!

Depois de dois anos de silêncio, estou de volta!

Volto com novidades... Filhos casados, sessões de terapia (o mundo agradece), aulas de pintura a óleo e aquarela, muitas séries, alguns livros e aposentadoria a caminho.

Apesar de estar no modo light, sigo sem confiar no capitalismo flexível, assustada com a precarização do trabalho, impaciente com o discurso neoliberal, solidária ao autoempreendedorismo, descrente da bancada evangélica, com preguiça dos coaches e dos antivacinas e por aí vai...

 Sempre é bom enfatizar que este blog foi criado para incomodar, para constranger o senso comum ou, simplesmente, levantar suspeitas sobre as obviedades.

Nesta nova temporada, a intenção é trazer textos mais curtos, informais e sem rigidez acadêmica. Os artigos, em formato mais fluido, continuam trazendo em seu DNA referências conceituais e filosóficas indispensáveis para a investigação do tema. Seguindo Paulo Freire, estou aprendendo a escrever a minha palavra, historicizar-me, biografar-me e testemunhar a minha existência e de muitas mulheres interessantes numa verdadeira miscelânea literária.

Vamos começar por Lídia Poët.

Imagine uma jovem competente, inteligente impedida de exercer a profissão que escolheu por ser mulher? Assim ocorreu com Lidia Poët, personagem da série “As Leis de Lídia Poët”, lançada pela Netflix. A história apresenta a luta desta mulher pelo exercício da advocacia no final do século XIX.  

Lídia nasceu na Itália em 1855, era normalista, ingressou no magistério, fez  Direito anos mais tarde na Universidade de Turim, formando-se  em 1881. Muito embora tenha cumprido todos os trâmites legais para inscrição na Ordem dos Advogados da Itália, Lídia teve seu registro revogado pela Procuradoria Geral do Reino, pela Corte de apelação e também pelo Tribunal de Cassação. A tese apresentada para a revogação do registro baseava-se apenas na manutenção de um paradigma – a Advocacia não é profissão para mulher!

As Cortes de apelação apresentaram alegações vinculadas à discriminação de gênero e ao direito de costumes. A negativa do registro apontava a fragilidade biológica, o papel social, a moral,  a estética, o risco da sedução etc.. Uma lógica sexista disfarçada de protetiva, que até hoje as mulheres precisam pagar um alto preço para romper. Assim, por anos, Lidia Poët exerceu a advocacia como assistente de seu irmão, Giovanni Enrico.  

Embora, os casos apresentados na série sejam ficcionais, a luta desta mulher foi real e perdurou por toda sua vida. Ela integrou o Conselho Nacional das Mulheres Italianas, lutou pelo voto feminino, militou pelo direito da mulher exercer a advocacia, pela reforma penitenciária, pelo direito da criança, pela admissão de mulheres ao serviço público, trabalhou como voluntária na Primeira Guerra Mundial e integrou o Comitê de Refugiados da Comuna de Pinerolo.  

Depois de anos na invisibilidade profissional, em 1920, amparada pela Lei n. 1.179, de 17 de julho de 1919, Lidia Poët finalmente ingressou na Ordem dos Advogados, tornando-se, aos 65 anos, a primeira mulher advogada da Itália. 

 Os ratos de Banksy

No Brasil de hoje, a Ordem dos Advogados continua sendo dos advogados. Por que não Ordem da Advocacia? Seria tão óbvio, uma vez que 53,6% dos profissionais inscritos na Ordem dos Advogados são mulheres. Segundo dados do Conselho Federal da OAB, 623.285 mulheres exercem a advocacia no país. Das 27 Seccionais da OAB, 05 são presididas por mulheres (18,5%). Somando todas as Cortes Superiores de Brasília, temos 90 ministros, sendo 17 mulheres (19%). São números que inspirariam outra séria... “Lídia Poët, 143 anos depois”.  

Para além da sub-representatividade das mulheres nos espaços de poder, ainda amargamos denúncias e mais denúncias de assédios moral e sexual, etarismo, piadas misóginas, discriminação, racismo, desigualdades na ascensão de cargos e carreiras, distorção de salários e oportunidades, sem minimizar o colaboracionismo estrutural.

A capa da Revista da OAB/DF de 14/09/2020 trouxe o título “Com que roupa eu vou? A advocacia pede estilo elegante, tradicional e clássico”. Uma especialista em dress code, imagem corporativa, analisa a importância da construção de uma imagem positiva para adequação profissional a cada situação. Até concordo que elegância e canja de galinha não fazem mal a ninguém, mas daí a estar  na capa de uma revista informativa da OAB? 

Este dress code corporativo me fez pensar nas obras de Banksy. Trata-se do artista de rua mais famoso do mundo, ex-grafiteiro, ativista político, cineasta, artista plástico e provocador da burguesia. Talvez seja britânico (ninguém sabe), porque sua identidade permanece no anonimato. Ganhou notoriedade por suas intervenções artísticas em lugares inusitados de várias cidades no epicentro do poder.

 Podemos dizer que a arte de Banksy é um anti-dress code da sociedade.

Durante a pandemia, Banksy pintou muitos ratos como figuras representativas do nosso cotidiano. Ratos no banheiro, no metrô, nas paredes, nos escritórios, por toda parte. Os ratos simbolizam os porões das relações sociais desumanizadas. Humanos parasitas de humanos, explorados por humanos, exterminados por humanos, excluídos por humanos, normatizados por humanos. Estão por toda a parte, nascem, crescem, comem, estudam, procriam, trabalham, parecem humanos, mas são ratos!


As flores  de  Frida    Pinto flores para que elas não morram. Frida Kahlo

Se o mundo tem ratos, também tem flores!  E como nada é por acaso, enquanto eu acompanhava a série Lidia Poët, também li a biografia e visitei a exposição de Frida Kahlo. Desta imersão, nasceu a ideia de observar, sentir e ouvir o que essas mulheres têm a nos dizer.

Lidia Poët, uma mulher do século XIX, interior da Itália, buscou subverter o patriarcado lutando por direitos, autonomia e representatividade. Já Frida, militante, do século XX, orgulhosa da revolução mexicana, viveu a transgressão, a sexualidade livre e a valorização artística de suas tradições. 

A advocacia conferiu a Lídia Poët uma racionalidade técnica e normativa.  Sob esta lógica, após o cancelamento do seu registro na Ordem dos Advogados, ela permaneceu na informalidade do exercício profissional, à sombra do irmão Enrico. Da mesma forma, Frida era conhecida como a mulher do famoso muralista Diego Rivera. Embora a arte fizesse parte de sua vida desde a adolescência, ela se sentia ofuscada diante da genialidade de Diego.

Em sua carreira Lidia esteve à frente de várias lutas sociais e políticas, optou, assim, por  abdicar  da prole e de um relacionamento familiar estável. Apesar dos dissabores, teve longevidade e morreu com 94 anos. Seu nome é lembrado e homenageado em ruas, escolas, monumentos, biografias e filmografias. Já Frida, teve poliomielite na infância e seqüelas de um grave acidente na adolescência, razões da impossibilidade para gerar filhos. Desde cedo Frida aprendeu a conviver com tratamentos dolorosos, próteses, cirurgias e inúmeras internações, talvez seja esse o motivo de tantos autorretratos. “Eu me pinto porque estou sempre sozinha e porque sou o sujeito que conheço melhor”.

Frida retratada em seus diferentes papéis: mulher bela, sofisticada, revolucionária, mãe, latina, sofrida, traída, enferma, enlutada e tantas outras. Sim, a Frida  da tela revela um olhar denunciante, uma alusão à luta constante de ser humana, de dar vida a um corpo feminino, de negar todos os dias as imposições sociais, financeiras, laborais, estéticas e emocionais. De fato é impossível autorretratar-se e ocultar o que os olhos vêem. 

Segundo as declarações do amigo e fotógrafo Nickolas Muray, apesar das limitações físicas e emocionais, Frida mantinha regularmente um ritual matinal. Acordava, vestia-se com capricho, penteava delicadamente o longo cabelo, fazia o clássico penteado e o enfeitava com flores colhidas do jardim.   Este ritual, com trajes típicos, adornos e flores, não simbolizava a vaidade da artista, mas a sua capacidade de “pintar a tela” da sua existência, resistir e sobreviver, assim como registrou em sua última obra – Viva la vida!

Que possamos aprender com essas mulheres maravilhosas que todos os dias enfeitam suas mentes e corpos com flores e sonhos e saem para enfrentar os ratos do cotidiano.

Sempre há esperança! (Banksy)