ESCRITÓRIOS VAZIOS & CASAS CHEIAS
Retornei
a São Paulo em maio deste ano. No aeroporto utilizei transporte por aplicativo com
um motorista muito solícito e falante. A conversa fluía sobre previsão do tempo
para o final de semana, o preço do combustível, a crise do país, a campanha de
vacinação, a covid que ele adquiriu em dezembro e críticas a política do “fique
em casa” do governador Dória, evitando entrar no embate político eu ouvi mais do que
falei.
No trajeto passarmos pela região da Berrini, área conhecida como um dos pólos econômicos da cidade. Retomando a conversa sobre a crise financeira que o país atravessa, ele falou: “ estes arranha-céus aqui da Berrini viraram prédios-fantasmas!” Explicou que as empresas fecharam suas portas e assim prejudicaram a sua atividade no transporte por aplicativo. “toda sexta feira eu rodava muito! Empresários pra lá e pra cá, congressos, workshops, feiras, exposições, levava japoneses para o Maksoud Plaza e de lá para aeroporto. Hoje a cidade não tem eventos ...
o aeroporto está vazio”.
Faz
sentido! São Paulo é uma cidade cosmopolita que possui um intenso dinamismo laboral.
Na região da Berrini, por exemplo, circulam cerca de 74.000 pessoas em dias
úteis distribuídas em mais de 7.000 importantes empresas nacionais e
internacionais. No mesmo ritmo temos a Avenida Paulista, Itaim Bibi, Brigadeiro
Faria Lima, Marginal de Pinheiros dentre tantas outras. Em virtude da pandemia
e da redução drástica das atividades presenciais o ano de 2020 impôs um novo
paradigma de trabalho “escritórios vazios X casas cheias”.
Quem nunca sonhou em trabalhar em casa?
Talvez o home Office seja a modalidade que mais desperte fetiche no trabalhador,
A atividade flexibiliza o trabalho em três importantes dimensões - tempo, local
e meios. Tempo, na gestão do tempo
cronológico conforme a conveniência do trabalhador, trabalhar no horário de
adequação familiar, interromper quando necessário para retomar a qualquer tempo.
Local, o home office permite a
transposição do escritório da empresa para qualquer lugar que possua a
infraestrutura necessária para execução do trabalho, como a sala de casa, o
quarto de um hotel, o escritório de um amigo, um hostel em outro país, o carro e até na praia. Meios, a atividade só permite o deslocamento pelo uso de recursos
tecnológicos e informacionais sofisticados, para tanto exige do trabalhador
capacitação e domínio das Tecnologias de comunicação e informação (TIC’s).
Na perspectiva do teletrabalhador, sob a liberdade da casa/trabalho e domínio do tempo, local e meios, o home office significa o fim da biometria,dos engarrafamentos, do deslocamento, do escritório, do traje executivo, da vigilância, do espaço hierarquizado, da hora do almoço, do horário comercial de produtividade, ou seja, o fim da rua. Em contraponto, trabalhar em casa requer logística, disciplina, compromisso, rotina, disponibilidade para ligações a qualquer horário, organização dos afazeres da casa sem prejuízo para os prazos e metas a cumprir. Precisa ter autogestão do tempo sem auto-sabotagem, aliás, empregador algum permitiria home office se a redução de custos não fosse financeiramente interessante sem interferência na produtividade.
Segundo
o professor Paulo Porto da Fundação Getúlio Vargas, a pandemia apenas acelerou
um processo anterior de conjugar eficiência das operações e redução de custos.
Acredita-se que um novo cenário corporativo híbrido esteja por vir, mas o que
haverá de tão interessante ao empregador para manter os trabalhadores fora dos espaços
minuciosamente criados para produção e controle? O filósofo coreano Byang -Chul
Han, em seu brilhante livro “A sociedade
do cansaço” afirma que na sociedade do desempenho cada um carrega em si ao mesmo
tempo o detento e o guarda, a vitima e o
algoz, o senhor e o escravo. A separação
entre o trabalho e o não trabalho, antigamente era demarcada pelo relógio de
ponto, hoje, essa separação deixou de existir na vida do trabalhador sob a
narrativa de uma pretensa liberdade e autorrealização.
“Aqui não entra o outro como
explorador, que me obriga a trabalhar e que me explora. Ao contrário, eu
próprio exploro a mim mesmo de boa vontade e na fé que eu possa me realizar. E
eu me realizo na direção da morte Otimizo a mim mesmo para morte”. (HAN, p.
116)
Em 2017, quando Byang-Chul Han escreveu
Sociedade do cansaço, não havia pandemia
do coronavírus, no primeiro capítulo do livro ele afirma que não vivemos numa
época viral, mas numa época neuronal, a exemplo da depressão, do transtorno de
défict de atenção com síndrome de hiperatividade, do transtorno de
personalidade limítrofe ou a síndrome de Burnout etc. Na época bacteriológica
ou viral o inimigo está fora, na época neuronal o inimigo está dentro.
Infelizmente, a genialidade do autor lhe pregou uma peça e três anos depois
temos uma pandemia viral numa sociedade neuronal, ou seja, os inimigos estão
dentro e fora.
Neste
contexto, a desocupação dos arranha-céus da região da Berrini resultou na
ocupação de apartamentos de luxo, coworkings, hotéis, casas de praia e
serranas, mas também pequenos cômodos compartilhados nas periferias das cidades.
De fato o home office não é uma modalidade democrática, ao contrário, ele expõe as diferenças que a ocupação dos escritórios tentava minimizar. O trabalho
em casa expõe as condições de vida (relacionamento familiar, alimentação,
repouso, lazer, mobiliário, ventilação, iluminação, limpeza, domínio
tecnológico etc.) e estas condições perpassam o valor do trabalho.
Assim o escritório foi para casa e a casa não
foi para lugar algum. Ela continua no mesmo endereço, apenas ganhou mais uma
funcionalidade dentre tantas outras, a de ser “parceira” de alguma corporação
da Berrini. Interessante que essa parceria envolve a vida e rotina de outras pessoas
que não são vinculadas à empresa. Mistérios que só o capitalismo neoliberal
sabe decifrar.
Na busca de liberdade e autorrealização,
o trabalhador em home office
transforma-se num refugiado em sua própria lar, entrincheirado entre o
fantasma do relógio de ponto e a velocidade da internet, sendo ele próprio guarda, algoz e senhor, o explorador de sua
força de trabalho e controlador de sua produtividade, numa atmosfera insana
entre interdependência e isolamento social. Uma autoviolência laboral em
virtude de uma outra violência (viral)
mortal.
Referências:
HAN, Byang-Chul. Sociedade do cansaço; tradução de Enio Paulo Giachini.
2ª edição ampliada - Petrópolis RJ : Vozes, 2017.
Imagens: UOL Economia
Entrevista com o Professor da FGV Paulo Porto : https://canalmynews.com.br/economia/especialistas-acreditam-em-recuperacao-do-mercado-de-escritorios-na-pos-pandemia/
Créditos também para a reflexão pragmática de um motorista de aplicativo anônimo pelas ruas de SP.