terça-feira, 26 de maio de 2020

ESCRITOS DO ISOLAMENTO - PARTE 2


                                  
                            O rosto feminino na política  & as bruxas da noite 



O isolamento social continua... 62 dias se passaram! As janelas estão fechadas, as lives já são mais escassas, as entrevistas com os especialistas parecem repetitivas. Todas as boas práticas de sobrevivência já foram aplicadas, ginástica na sala, aniversários nas varandas, mensagens de autoajuda, aplausos na janela, leitura, meditação, filmes, séries, reprise de jogos, panelaços, muitos panelaços!


Os jornais mantêm duas frentes de informações, quase contraditórias entre si. A mais relevante refere-se à luta pela vida no enfoque epidemiológico da pandemia, informes sobre número de infectados, óbitos, a falta de equipamentos de proteção individual (EPI’s) e ventiladores, a escassez de profissionais de saúde, a dor das famílias, enfim, o caos logístico e sanitário resultado de sucessivos governos negligentes. Na outra frente de notícias temos o descaso pela vida com denúncias sobre fraudes, corrupção, compras indevidas, desvio de verbas para hospitais de campanha, barganhas políticas, cloroquina, rolezinho do mito, demissões de ministros, dentre tantas notícias que explicitam o caráter hediondo de muitos  políticos no Brasil.

Enquanto a pandemia avança na escalada de infectados e óbitos houve divulgação do vídeo dos horrores, a famosa reunião do Presidente da República, seus Ministros e Secretários no dia 22 de abril. Nada menos do que o Poder Executivo reunido para ofender, xingar, ameaçar e desrespeitar o povo brasileiro. Sim, o povo brasileiro! Só para lembrar: em 2018 tivemos eleições diretas com dois turnos, pleito legítimo com cerca de 57 milhões de votos. Não há dúvida sobre a marca da violência do bolsonarismo (ismo no sentido ideológico). Sem qualquer traço de elegância ou respeito, o diálogo (diálogo com muitas aspas) expressa  ódio de forma nua e crua. Sem disfarces, sem riso sardônico, nem versículos bíblicos, só ódio. Nesse clima de “nós contra todos” não seria justo gastarmos tempo e energia com as sandices de Bolsonaro... os seus eleitores que cuidem das hemorróidas dele (piada interna rsrs).

Para manter a sanidade, e bloquear a toxicidade dos escândalos de Brasilia, precisamos buscar alternativas positivas e desafiar o cérebro a sair do lugar comum. Essas boas práticas podem ser inspiradoras para você escrever, pintar, cozinhar, cantar, dançar, pensar e questionar o obscurantismo atual. Essa semana me nutri dos podcasts História FM, História Noturna. Ouvir podcast tem se tornado um hábito bem prazeroso e adaptável à realidade pandêmica atual, créditos e agradecimentos para o historiador Icles Rodrigues apresentador e "provocador" destes podcasts. Também teve livro ( sim!!!) da jornalista Svetlana Aleksiévitch chamado  A guerra não tem rosto de mulher. 


O livro A guerra não tem rosto de mulher trata do revisionismo sobre uma temática negligenciada pela historiografia de guerra, a presença de mulheres na guerra, no front de batalhas durante a Segunda Guerra Mundial. Exércitos de mulheres serviram nas forças armadas de quase todos os países compondo contingentes significativos de combatentes. “Nas tropas inglesas eram 225 mil; nas americanas, 450 mil; nas alemães, 500 mil; no exército soviético lutaram aproximadamente 1 milhão de mulheres” (p.08). Elas atuaram em várias especialidades militares como soldados de infantaria, tanquistas, pilotos, comandantes de pelotão, franco-atiradores, sapadores e tantas outras atividades que até então não possuíam gênero feminino. 


A autora Svetlana Aleksiévitch fez um exaustivo trabalho de campo, buscando ouvir e dar voz a mulheres esquecidas que mergulharam suas experiências, traumas e dores no silêncio da história. Sabemos que “silêncio também é história” e talvez seja essa história amordaçada e censurada a de maior relevância e profundidade. Em longas entrevistas a escritora procura trazer a narrativa feminina diante da mais nefasta das atividades humanas – a guerra! Para Svetlana, o ser humano é maior que a guerra e essa é a linha de condução do seu trabalho, expor as experiências vividas por essas mulheres guerreiras pela ótica da humanidade. Não somente um reconhecimento de bravura, de patriotismo, mas principalmente, um mergulho na escuridão, no mistério da guerra e na reconstrução da vida para essas sobreviventes.

Nesta vibe de mulheres na guerra, acrescentamos a emblemática história das Bruxas da noite. Este apelido foi dado pelos alemães do Terceiro Reich às mulheres aviadoras da Força Aérea Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. Elas faziam parte do 588º Regimento de Bombardeio Aéreo Noturno Soviético, um regimento comandado pela Coronel Marina Raskova composto exclusivamente por mulheres voluntárias. Essa  unidade realizou ao todo mais de 23 mil vôos noturnos com intensos ataques responsáveis por bombardeios que atingiram e destruíram tropas alemães. O regimento utilizava biplanos de madeira e lona, a estrutura lenta e obsoleta das aeronaves exigia que as missões ocorressem sempre durante a noite. A técnica de ataque unia aceleração, desaceleração e manobras radicais demandando  destreza e ousadia das pilotas para o sucesso dos bombardeios nos acampamentos. A manobra de fuga não permitia reação dos alemães que identificavam os ataques pelo som das aeronaves semelhante à vassoura de palha no chão, daí o apelido de bruxas da noite.

Bruxas da Noite na Segunda Guerra Mundial - Incrível História

De volta à realidade...

O que essas mulheres combatentes, o livro de Svletana, os podcasts e as bruxas da noite têm de relevante com os nossos dias? A contradição!  Há um detalhe muito propositivo no título do livro A guerra não tem rosto de mulher. A autora revisita o tema pela negação. A historiografia de guerra pode ter ocultado, calado e refutado a existência dessas testemunhas, mas elas estavam lá! Voluntárias, ou não, foram pra guerra, lutaram, sofreram, sobreviveram (e morreram também). Havia rosto de mulher na guerra! Rostos com medo, fome, dor, traumas, mas estavam lá! Escrevendo a História... Seria a guerra uma memória de orgulho feminista? Naquele momento histórico, sim, e não seremos anacrônicos para fazer esse julgamento.

Voltando ao nosso cenário em franca pandemia do coronavírus, no meio do caos a sociedade brasileira está entrincheirada com bombardeios de fake news, denúncias de corrupção, discurso de ódio, fraudes, defesa de milícias, ameaças ao Estado democrático de Direito... Nessa guerra onde está o rosto de mulher? Não há rosto de mulher! A atuação de mulheres que representem o feminismo na esfera pública é pífia, em dimensões talvez jamais vistas. A participação de mulheres no governo Bolsonaro exprime uma das menores do mundo, apenas 9% de mulheres dos 22 ministérios, ficando atrás do Sudão, Camboja, Filipinas, Afeganistão, Argélia e Gabão. Eram três mulheres sendo que a namoradinha do Brasil já foi demitida. Sororidade a parte, são figuras totalmente caricatas, inexpressivas, figuras decorativas submissas a um governo misógino. Da mesma forma, O Poder Legislativo também agoniza em representatividade feminina, sendo 2% de mulheres no Senado e 15% na Câmara de Deputados. Não há muito do que se orgulhar, são discussões do mais baixo nível em redes sociais, acusações, favorecimentos, carreirismo, traições partidárias, ou seja, mulheres aprendendo a jogar o jogo masculino do poder.


Que bom que a escritora Svetlana resgatou a honrosa memória das mulheres combatentes da Segunda Guerra Mundial. Elas existiram (e ainda existem) e construíram uma narrativa de luta feminina e tiveram o que dizer. Aguardemos que no século XXII alguma escritora revise a nossa obscura história política e encontre algumas Bruxas da Noite.  

quinta-feira, 21 de maio de 2020

ESCRITOS DO ISOLAMENTO - PARTE 1

 Máscara e álcool gel


Portal LIS - Localizador de Informação em SaúdeAs palavras do confinamento nem sempre obedecem ao tempo cronológico, à coerência temática, à norma ortográfica ou à estética. As palavras do confinamento são livres e libertárias. Elas ecoam entre a discussão e o silêncio, entre um meme engraçado e o choro de saudade, entre uma música e a mensagem no grupo familiar, Palavras ecoam - fiquem em casa!!! E mais tarde ecoam num panelaço: Fora Bolsonaroooo!!!



Não fomos feitos para prisões, embora não tenhamos a mínima empatia com os encarcerados. Aliás, sempre julgamos o tempo de cumprimento de pena (dos outros) ínfimos e fáceis de cumprir! Falo de “prisão” com aspas, muitas aspas. Prisão não corresponde aos cômodos higienizados da nossa casa, com almofadas, wifi, Netflix,  água gelada (até uma cervejinha importada),  alimentação fitness e  sobremesa diet , não é prisão! Pai perdoa porque não sabemos o significado da palavra prisão!

 O que vivemos hoje não é prisão, óbvio! Trata-se de isolamento social durante a pandemia! Uma medida sanitária drástica, mas importante, para interromper a circulação de pessoas e serviços e assim reduzir a curva de transmissão viral. Não há lugar seguro, nem um sequer! Vivemos o momento mais dramático dos últimos 100 anos, a Era dos extremos que o saudoso historiador Hobbsbawm denominava o século XX  referindo-se às Grandes Guerras, às crises econômicas, à corrida espacial, à Guerra Fria, ao colonialismo, deram lugar a um vírus no século XXI.  Temos uma pandemia! 

Coronavírus (Covid-19) - ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar

O significado da palavra Pandemia só existia nos dicionários e livros de biologia, uma epidemia de grandes proporções cujo agente etiológico (infeccioso) espalha-se entre os humanos sem respeitar barreiras geográficas, econômicas ou climáticas. Entre 1918 e 1919, houve a pandemia da gripe espanhola,  na verdade ela começou em campos de treinamento militar nos EUA e espalhou pelo mundo atingindo 500 milhões de pessoas e dizimando aproximadamente  50  milhões. 

Na condição de profissional de saúde e servidora pública do SUS, nunca vivi uma pandemia., nem eu e nem ninguém. Só conhecemos  pandemia  através dos filmes, sempre foi sucesso de bilheteria a ideia de devastação por um vírus mortal nas telas de cinema, mas não estávamos preparados para viver essa ficção.  O filósofo Braudillard, em seu livro Simulacro e simulação (1980), afirma que  a sociedade busca a hiper-realidade para superar a sua realidade contraditória. Sim, de fato são interessantes as epidemias, a guerra bacteriológica dos estúdios de cinema, da cidade imaginada, da arquitetura cenográfica, dos heróis e heroínas num jogo de ilusões.  Em  fevereiro de 2020, a pandemia do coronavírus saiu da hiper-realidade ficcional dos estúdios para contagiar o planeta.

Diferente da gripe espanhola, o coronavírus teve seus primeiros registros em dezembro de 2019 na cidade de Wuhan, na China. Apesar da seriedade da crise sanitária vivenciada pela China,  as autoridades sanitárias de todo o globo postergaram o que estava por vir... talvez ignorando um outro conceito tão importante na geopolítica chamado aldeia global. O termo aldeia global engloba a relação do progresso tecnológico e o encurtamento das distâncias tempo-espaço. O mundo foi destribalizado pela tecnologia e pela circulação de pessoas e serviços, assim a borboleta que bateu as asas  em Wuhan iria fazer (e fez) tufão na Europa, nos EUA e aqui também!

Enquanto em fevereiro em Wuhan o coronavirus aterrorizava a população, colapsava o  sistema de saúde e econômico, aqui no Brasil o carnaval bombava em todos os estados com megablocos arrastando multidões de turistas. No primeiro momento circulavam ideias otimistas a despeito da diminuição da virulência do covid-19 pela questão climática do continente. Aqui a chapa esquenta literalmente! Vamos combinar que brasileiro não tem  medo de vírus, aliás o brasileiro tem medo de pouca coisa na vida! Nosso povo senta nas calçadas, frita nas praias, toma água contaminada, nada nas enchentes, ingere  doses cavalares de agrotóxicos, almoça e janta fast food e de uns tempos pra cá já nem acredita mais em vacina. Brasileiro é Highlander!!! Acreditou-se que o “calor  dos trópicos” e o fôlego do brasileiro fossem inativar o vírus, isso não ocorreu. E ainda no ziriguidum  do carnaval, o Ministério da Saúde  anuncia o primeiro caso “importado” na cidade de São Paulo.

A partir do registro do caso 1, vieram os seguintes, mais outros, os casos graves e óbitos. Assim, o mês de março acordou o brasileiro (ainda de ressaca) para a realidade e assuntos   até então nem um pouco significativos do cotidiano; o SUS tem condições de suportar a pandemia? Temos profissionais de saúde capacitados? Há leitos de CTI para todos? O que é EPI (equipamento de proteção individual)? Quarentena X isolamento social... O infectologista falou sobre transmissão... O epidemiologista orientou sobre sintomas... A Fiocruz está pesquisando vacina! Os pesquisadores da USP estão testando ventiladores!  O crescimento exponencial vai subir (Ai meu Deus!) A curva epidêmica tem que achatar... Coloca máscara,  tira máscara, toma vitamina D, passa álcool gel, lave as mãos... Chegaaaa!!!!

O filósofo Byung –Chul Han,  em seu livro Sociedade da transparência (2017), afirma que os habitantes digitais estão ligados em rede e têm uma intensiva comunicação entre si. Trata-se de uma população carcerária da hipercomunicação.  Nossa prisão digital não tem muros, tem exposição e vigilância mútuas ilusoriamente disfarçadas de liberdade.  A pandemia na era da hipercomunicação maltrata em tempo real. Para o autor, “mais informações e mais comunicação não clarificam o mundo; a transparência tampouco o torna clarividente. A massa de informações não gera verdade, e quanto mais se liberam informações tanto mais transparente torna-se o mundo. Por isso a hiperinformação e a hipercomunicação não trazem luz à escuridão” (p.96). 

Com 156 novos casos, Amazonas vai a 62 óbitos por Covid-19 ...
 Apesar do humor incontestável do brasileiro, da capacidade desse povo ressurgir das cinzas com riso, graça e alegria, na verdade estamos com medo. Com medo e confusos no meio dessa escuridão de informações, de ações governamentais toscas e do número dramático de vidas perdidas, porque sabemos  que não somos expectadores de um filme de ficção.