quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O QUE ESTÁ ACONTECENDO? O SUS ESTÁ AO CONTRÁRIO E NINGUÉM REPAROU... 


 O governo do PT, depois de dez longos e adormecidos invernos, despertou para a seguinte realidade: faltam médicos no SUS??? 
No SUS faltam médicos!!! Digo mais... faltam dentistas, psicólogos, nutricionistas, enfermeiros, técnicos, agentes comunitários, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, farmacêuticos, administrativos, inclusive médicos.

Lamentavelmente o ideário democrático iniciado na década de 80, com o movimento em defesa da reforma sanitária, hoje esmorece diante das imposições neoliberais. A passos largos o Sistema Único de Saúde vem se rendendo às medidas provisórias, portarias, determinações, editais. Um encaminhamento no mínimo autoritário que sobrepõe todo o debate e luta de democratização da saúde e a imperiosa relevância da participação popular neste processo.

 Em documento intitulado “Vinte anos de SUS: celebrar o conquistado, repudiar o inaceitável”, o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) elaborou em 2008, marco dos vinte anos da criação do SUS, um manifesto contendo um rol de situações consideradas inaceitáveis na trajetória do SUS.  Dentre elas a desvalorização do profissional de saúde recebeu significativo destaque, “É inaceitável que os profissionais de saúde sejam desvalorizados e tenham suas condições de trabalho aviltadas”.

Hoje, cinco anos após este manifesto assistimos à chamada de médicos estrangeiros para os confins da terra brasilis sobre a denominação "Programa Mais Médicos para o SUS".  A proposta se justifica em um discurso tacanho de convocação de médicos estrangeiros , como se fosse uma força tarefa, para socorrer áreas de maior vulnerabilidade social do país.  Falamos de quem? Burkina Faso? Haiti? Burundi? Níger? Não!!!! Falamos do Brasil, uma das economias mais promissoras do mundo, com altas concentrações renda per capita, com riquezas naturais, autossustentável em energia fóssil, sede da Copa do Mundo e das Olimpíadas, um dos principais países no mercado BRIC’s.
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No Portal do Ministério da Saúde a justificativa para a Medida provisória deriva de duas situações, primeira,  a desproporção entre o número de médicos no país e a ampliação dos postos de trabalho no SUS. Este fato pode ser compreendido como fruto do descaso histórico com a saúde pública no Brasil. As políticas depreciativas, o financiamento deficitário, a desvalorização dos servidores, os baixos salários e péssimas condições de trabalho, foram semeando o desinteresse dos jovens pela área de saúde e, consequentemente, refletiram na evasão de talentos para outras áreas do conhecimento privilegiadas pelo mercado de trabalho (Tecnologias de Informação e Comunicação, Direito, Publicidade, Engenharia de Petróleo, Ambiental, de Produção etc.) A outra situação refere-se à má distribuição de médicos no território nacional. A concentração de médicos e demais profissionais nos grandes centros urbanos não deveria causar estranhamento para a alta administração do governo, uma vez que toda a infraestrutura educacional e sanitária (universidades, estágios, residência, especializações, rede hospitalar, atendimento por especialidades, reabilitação, exames de alta complexidade) também são essencialmente metropolicêntricas. A origem do deslocamento decorre da exclusão educacional das áreas periféricas do país, na fase de formação e profissionalização do estudante.   Dados do IBGE (2010) confirmam que 29,2% dos universitários brasileiros moram em uma cidade e estudam em outra e o índice chega a 32,6% em relação aos cursos de especialização, mestrado ou doutorado. O alto fluxo de profissionais nos grandes centros hegemônicos facilita a inserção no mercado de trabalho competitivo e flexível.

Todo o investimento veiculado pela mídia em torno do Programa Mais Médicos desconsiderou os critérios avaliativos de revalidação preconizados pelo MEC, segundo o Ministério da Saúde só poderão participar da seleção os médicos procedentes de países com proporção maior do que 1,8 médicos por mil habitantes (índice do Brasil). Isso quer dizer que os parâmetros quantitativos equivalem aos parâmetros qualitativos na formação educacional? Apesar do repúdio do CREMERJ a revalidação do diploma por parte dos médicos estrangeiros tornou-se dispensável, subentende-se nesta conjuntura que qualquer instituição de ensino estrangeira forma melhores profissionais do que o Brasil?

O Programa Mais Médicos também atinge outra questão não menos relevante,  a  relação de trabalho no SUS.  O Programa especifica o vínculo na forma de residência, para os brasileiros, e contrato por tempo determinado, inicialmente três anos, para os estrangeiros. Embora a remuneração destes profissionais esteja muito acima da realidade nacional, em torno de 10 mil reais, trata-se de precarização do trabalho,. O programa desconsidera a prerrogativa constitucional de acesso ao serviço público e com isso destitui os trabalhadores de direitos e garantias concernentes ao serviço estável (férias, 13º salário, triênio, licença maternidade, auxílio doença, insalubridade, periculosidade); tal a vulnerabilidade se expressa na subjetividade dos critérios de desligamento do contrato,  “o abandono do programa antes de 180 dias sem justificativa implicará na restituição de todos os valores referentes à ajuda de custo”.

O duelo de titãs  está justamente no conflito entre os programas de governo instituídos no SUS, ora afeto à precarização do trabalho como no Programa Mais Médicos,  ora  em política de enfrentamento ao trabalho precário como o Deprecariza-SUS. Criado desde 2006, o Programa de Desprecarização do Trabalho no SUS tem por finalidade corrigir a equivocado uso do trabalho precário na política de provimento e ampliação dos recursos humanos no SUS. Trata-se de pactuação nas três esferas de governo (federal, estadual, municipal) em atenção às deliberações da Organização Internacional do Trabalho (OIT); em defesa do trabalho decente; no combate ao processo de precarização do trabalho no SUS; em atenção aos Termos de Ajuste de Conduta (TACs) e medidas ajuizadas pelo Ministério Público Federal. Os objetivos e metas do programa visam o incentivo aos concursos públicos e a substituição gradual da força de trabalho precarizada do SUS.

Mas como combater o trabalho precário alimentando a precarização? Como construir um Sistema Único de Saúde democrático se as políticas de governo são autoritárias e excludentes? Será que os gringos da missão “Mais Médicos” têm noção que a miséria, o desemprego, as epidemias, a fome, a seca, enfim, os determinantes de saúde definidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) se escondem por trás da sórdida máquina administrativa corrupta? Será que eles conhecem o Brasil das grandes riquezas não tributadas? Dos latifúndios? Das licitações fraudulentas? Dos projetos sociais fantasmas? Dos acordos internacionais a custa do sacrifício do povo? 

Na medida em que crescem as contradições no SUS, mais comprometida fica a sua sustentabilidade nos pressupostos da Reforma Sanitária. Parafraseando Nando Reis “o mundo está ao contrário e ninguém reparou”.  Digo mais... assim como o mundo, o SUS também está ao contrário e ninguém está reparando...





segunda-feira, 2 de setembro de 2013

PRECARIZAÇÃO E PRECARIEDADES: OS DOIS CAMINHOS TORTUOSOS DO SUS

Ao longo dos dois últimos anos, venho desenvolvendo uma pesquisa social na área de Ensino na Saúde sobre o tema “Formação profissional e crise do trabalho contradições e desafios para o SUS”. O procedimento para coleta de dados abrange entrevistas e observação participante com o objetivo de captar opiniões, percepções e representações dos sujeitos sobre o processo de trabalho no SUS. 

Nas primeiras abordagens com o grupo de estudo foi possível perceber o estranhamento dos sujeitos em relação ao termo precarização do trabalho. Este fato motivou a leitura preliminar do conceito elaborado pelo Comitê Interinstitucional de Desprecarização do Trabalho no SUS. Após a leitura, as opiniões sobre a ocorrência do trabalho precário no SUS foram norteadas por expressões como “estranho”, “ruim”, “inaceitável”, “absurdo”, “péssimo. Embora seja um fenômeno cada vez mais freqüente no serviço público, os depoimentos coletados relacionaram a precarização do trabalho com precariedades, sem qualquer distinção conceitual.  

 “Este conceito está vago ele não é suficiente”; “quando eu li o conceito eu fiquei decepcionada”; “tem que envolver não só o  vínculo empregatício, mas  as condições reais de trabalho, materiais  e humanas”; “como eu disse, lutar  por condições melhores de trabalho internas, talvez a gente pudesse se unir e tentar”; “eu achei que iria envolver a falta de um grampeador por exemplo  (...)”;  “essa precarização abrange muito mais do que isso;” “isso é uma fatia da precarização.”;  “para mim, precário era uma coisa totalmente diferente, uma coisa deficitária. (precarização) (...) “as condições são relacionadas à  falta de recursos materiais, financeiros,  humanos”;  “desta forma aí como direitos trabalhistas”? “nós trabalhamos em situação bem precária em tudo”; “a gente trabalha com seres humanos em situações até mais precárias”; “a  precariedade não é só do funcionário , é  do atendimento também”.

No dicionário da língua portuguesa precariedade origina-se do latim - precariu - significa aquilo que foi concedido por graça e pode ser revogável, ou seja, instável, pouco durável, insustentável. Precariedade é um substantivo qualidade do precário. Para os sujeitos a precariedade no SUS representa a escassez de recursos materiais, a inadequação dos espaços, falta de logística, o desperdício, o desvio orçamentário, o atraso tecnológico e outras situações que comprometem a qualidade na prestação de serviço.  Já precarização do trabalho é um conceito sociológico concernente ao fenômeno global de caráter destrutivo derivado da reestruturação produtiva do capital. Caracteriza-se pela expropriação do trabalhador de direitos historicamente conquistados, distorção da dimensão ontológica do trabalho e comprometimento da qualidade dos serviços prestados. Antunes (2001, p.42) considera a precarização um conjunto de mutações e metamorfoses nas relações formais de trabalho, prestação de serviço, cargos comissionados, trabalho por tempo determinado, terceirizações, contratos, cooperativas etc. Esta babel de vínculos implica em perda de direitos, desinteresse pedagógico, discriminação, exclusão social, subemprego, desemprego, sujeição patronal e enfraquecimento sindical.


 A conjunção dos conceitos feita pelos sujeitos da pesquisa despertou o interesse investigar a questão pelo prisma filosófico de Gilles Delleuze e Felix Guattari.  Para os autores não é o conceito que funda a realidade, ao contrário, o conceito brota da realidade, serve para torná-la compreensível. O conceito é dual por natureza, serve para conservar ou transformar a realidade. O conceito é exclusivamente filosófico, resignifica o mundo a partir das seguintes características: tem estilo próprio (assinatura); define-se por multiplicidade (como um caleidoscópio); cria-se a partir de problemas; tem uma história; é uma heterogênese (são respostas possíveis); abrange o absoluto e o relativo ao mesmo tempo; é um acontecimento não é a essência ou a coisa; não é discursivo nem proposicional, este atributo pertence à ciência. “O conceito é um dispositivo, uma ferramenta, algo que é inventado, criado, produzido, a partir das condições dadas e que opera no âmbito mesmo destas condições” (GALLO, 2008, p. 43). 

De volta à questão da pesquisa, o que temos no SUS? precarização ou precariedades? Qual a diferença entre os termos? A quem interessa a precarização do trabalho e a precariedade do serviço? O que podemos esperar das instituições públicas que se beneficiam com a  precarização

Por ser um conceito, a precarização do trabalh tem história, foi criado a partir de problemas, é um dispositivo que permite a compreensão da realidade com duas dimensões distintas, de conformidade ou de transformação. Apesar de emanar da realidade, o conceito não corrige, não traz propostas, não tem energia, nem força para intervir no problema.  O fenômeno permite um novo pensar, é um acontecimento dinâmico, produtor de novos conceitos. Trata-se de um dispositivo que incomoda e pode provocar reflexão e ação.

As opiniões dos trabalhadores enriqueceram toda a condução da pesquisa, através deles pude perceber que a realidade deflagra a construção de conceitos, e a interlocução com outros conceitos.  Considerar precarização “apenas as relações de trabalho” para aquele que disponibilizam sua força de trabalho no SUS é muito pobre. Estes sujeitos sociais reivindicam um conceito mais amalgamado com outros elementos – condições de trabalho, dignidade, valorização, tecnologias, recursos materiais, direitos, garantias, enfim, a satisfação do trabalhador. Se o conceito existe para pensarmos o novo, o devir, que sirva para pensarmos um SUS que não transite pelos caminhos da precarização e precariedades.


Referências:
ANTUNES, Ricardo. A dialética do trabalho: escritos de Marx e Engels (org).  São Paulo: Expressão Popular, 2004.
_________. ALVES, Giovanni. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educ. Soc., Campinas, vol. 25, n. 87, p. 335-351, maio/ago. 2004 335 Disponível em http://www.cedes.unicamp.br . Acesso em: 18 fev 2012
__________. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2ª edição – São Paulo : Boitempo, 2009 ( mundo do Trabalho).
_________. Trabalho e precarização numa ordem neoliberal. In:  FRIGOTTO, Gaudêncio Cidadania negada : políticas de exclusão na educação e no trabalho.  Rio de Janeiro: Cortez Editora, 2001; cap.II p. 35 – 48.
GALLO, Silvio. Deleuze e a Educação. 2ª Edição, Belo Horizonte : Autêntica, 2008.