quarta-feira, 26 de maio de 2021

ESCRITOS DO ISOLAMENTO PARTE 5

         

      Sorry!!!  A Precarização está aqui!

 

 No início do ano, antes do mundo girar na rota do coranavírus, assisti ao filme “Sorry, we misses you!” do diretor Ken Loach, na tradução “Você, não estava aqui” (2019). A trama aborda a rotina de um trabalhador de serviço de entrega por aplicativo e sua luta por sobrevivência.


 A história se passa em 2018, em Newcastle, no Reino Unido. Ricky Turner (Kris Hitchen) é um operário da construção civil, vive com a esposa Abbie e seus filhos Lisa e Seb. Após o desemprego,  sem oportunidades no mercado de trabalho, Ricky consegue trabalho numa empresa de entregas. A vaga,  no entanto, dependia da aquisição ou consignação de uma van para entrega de mercadorias. A lógica da empresa era “empreender”, sem patrão, sem controle de jornada, sem limite de renda. Ricky seria  dono do seu horário e rotina, com autonomia para gerir seu próprio negócio; não era um operário, mas colaborador da empresa. Com o tempo toda a família sente a desumanidade de sua jornada e o ritmo de trabalho imposto pela empresa – prazos apertados, rotas distantes, abusos e falta de condições humanas básicas. A tela apresenta o esgotamento e invisibilidade esse entregador diante da empresa e dos consumidores.

O filme traz uma estética cenográfica muito provocativa, clima frio e cinzento, trânsito caótico, olhares perdidos, dor,  desesperança na face e na alma dos personagens.  Assim como Ricky, sua esposa Abbie também sofre com a precarização do seu trabalho. Ela  trabalha como cuidadora  de idosos numa modalidade conhecida no Reino Unido como  zero- hour contract  ou contrato de zero hora. Trata-se de trabalho intermitente no qual o trabalhador recebe somente pelas horas trabalhadas sem qualquer registro ou vínculo (cerca de um milhão de pessoas vivem hoje no Reino Unido deste tipo de trabalho). Assim, numa jornada indigente,  Abbie cumpre uma extensa agenda de atendimentos diários (alimentação, higiene, medicação, banho de sol etc.), no ir e vir de checagem de procedimentos em diversas regiões da cidade para uma  clientela pouco amistosa.

Embora seja recorrente a exaltação da informalidade no discurso de economistas, ministros, empresários e simpatizantes de políticas neoliberais, não há do que se orgulhar da sociedade que defende o trabalho precário como política de estado e banaliza a falta de direitos e garantias trabalhistas para os seus cidadãos. Um movimento sorrateiro no modo de produção veio “transformando” a classe que vive do trabalho (ANTUNES), ou seja,  operários,  trabalhadores, funcionários em “colaboradores”, “empreendedores”, “time”, “parceiros”, “tripulantes” e outras expressões amenas que definem a venda da força de trabalho sem nenhuma garantia. Sem glamorização,  sem likes e sem filtro, ao fim e ao cabo esse fenômeno brutal chama-se  Precarização do trabalho!

Segundo Antunes, precarização do trabalho significa um conjunto de mutações e metamorfoses nas relações formais de trabalho. Esse fenômeno global de caráter destrutivo deriva da reestruturação produtiva do capital. Caracteriza-se pela expropriação de direitos trabalhistas historicamente conquistados pela classe trabalhadora em virtude da retração do consumo, do desemprego estrutural, da maior concentração de capitais, da crise de welfare state, das privatizações e da flexibilização do processo produtivo (ANTUNES, 2009). Uma distorção da dimensão ontológica do trabalho geradora de um déficit social sem precedentes.

Há uma cena emblemática no filme, quando um companheiro de trabalho de Ricky como ato de boas vindas entrega-lhe uma garrafa pet para ele urinar. Parece brincadeira, mas há um fetiche insano da era digital na redução do tempo da entrega de mercadorias, mercadorias estas quase sempre fúteis ou totalmente desnecessárias. O que justifica maltratar o trabalhador, impor uma jornada dura, sem folgas ou intervalos dignos para garantir uma entrega expressa de cabides? Brincos? Umidificador de ambiente?Em cada entrega rápida (avaliação cinco estrelas) que chega em nossos lares com nossas superficialidades há um Ricky que não teve tempo de almoçar ou sequer urinar.

O fato é que o capitalismo não vai parar. O  Professor Ricardo Antunes em seu livro provocativo “O privilégio da servidão” (2019) nos faz compreender a razão pela qual a servidão digital é um privilégio na sociedade desigual com números crescentes de desempregados e desalentados. No seu livro, Antunes não decreta uma sentença, mas analisa um cenário triste, nublado, frio e sem esperança (como o do filme). O capitalismo não vai recuar, tampouco irá se humanizar, ao contrário, vai se reinventar para encrudescer seus processos  cada vez mais em direção ao lucro e produção de riquezas.

O mais interessante deste filme está na sensibilidade do diretor inglês Ken Loach, um militante de 83 anos.  Sir Ken não inventou uma história, ele compilou várias histórias, vários rostos, dilemas e dores. O drama permeia o cotidiano dos grandes centros, o destino das periferias, o monopólio da escassez, a insanidade do consumo, a invisibilidade do setor de serviços e a a servidão do século XXI.   Em cada clique nas plataformas digitais Uber, Cabify, Ifood, Rappi, 99, Amazon, Mercado Livre e tantas outras...  existe um Ricky,  sofrido, exausto e adoecido.    

Sorry! Tem alguém aí tocando a campainha?

 

ANTUNES, Ricardo. O sentido do trabalho : ensaios sobre afirmação e a negação do trabalho. 2ª edição – São Paulo, 2009. Boitempo (Mundo do Trabalho).

SORRY WE MISSED YOU. Tradução: Você não estava aqui. Direção: Ken Loach Produção Sixteen Films  Reino Unido: , 2018